Valério Romão – Nasceu em França, em 1974. Licenciou-se em Filosofia na FCSH.
Tem escrito contos (“o relojoeiro contorcionista”, revista Magma; “Facas na Cidade”, revista Construções Portuárias), peças de teatro (Posse,Trindade; A Mala, pelo CCB/Boxnova), feito traduções (V. Woolf, S. Becket) e tem colaborado com diversos artistas nacionais na definição de núcleos de sentido em peças multidisciplinares (moments of being, com Beatriz Cantinho e Ricardo Jacinto; Peça Veloz Corpo Volátil, com Beatriz Cantinho).
Publicou Autismo, em 2012, O da Joana, em 2013, Da Família, em 2014, pela Abysmo, Facas, pela Companhia das Ilhas, em 2013, A Mala, pela Guilhotina, em 2014, e Dez Razões para a Aspirar a Ser Gato, pela Mariposa Azual, em 2015. Autismo e O da Joana foram traduzidos para francês e italiano, respectivamente.
Olá Valério.
O que querias ser quando eras pequeno? É verdade que querias ser astronauta?
É verdade sim, comprei um livro de astronomia aos 7 anos.
E onde ficou esse sonho?
Quando percebi que para ser astronauta não só tinha de ser o melhor aluno como o melhor desportista, a realidade abateu-se sobre mim e, de aspirante a astronauta, passei a aspirante a astrónomo. É possível para quem tem duas mãos esquerdas.
E com qual das esquerdas escreves?
A menos má.
E quando começaste a levá-la a sério?
Quando ganhei os Jovens Criadores pela primeira vez. Pensei: “ich, não sou o único a acreditar que isto é bom”.
És repetente?
Ganhei por três vezes.
Para que não restassem dúvidas sobre a capacidade do criador enquanto jovem. Há aqui algo religioso. Mas voltemos aos prémios, ganhaste outros entretanto, que importância têm eles para um escritor, ou artista em geral? Parece haver uma luta permanente entre a crítica (se é que ela ainda existe) e as escolhas, como foi o caso recente do Manuel Alegre. Como vês todo este arraial?
Não ganhei mais nenhum. Para um escritor que começa, são importantes sobretudo para confirmar que aquilo que faz tem sentido. No momento em que estou seriam importantes para potenciar a divulgação do meu trabalho. Mas a verdade é que são uma lotaria e, havendo quem os ganhe com inteira justiça (no que de justiça pode haver, tendo em conta que não estamos no domínio das ciências exactas), há outros que os arrecadam por outras razões. O Manuel Alegre é apenas um exemplo desta última categoria. Por ser político, por ter um passado de resistência, pelo facto de as pessoas lhe abrirem a porta e de lhe oferecerem bons vinhos, confunde a importância que os outros lhe dão enquanto figura do regime saído da ditadura com o seu valor enquanto escritor. Mas parece haver mais gente a fazer este tipo de confusão.
A minha vontade de te premiar é enorme, como vês, mas foste finalista de alguns como o das Correntes de Escrita e até em França, onde estás traduzido. Apesar disso, ainda não consegues viver da escrita, pois não?
Nem pensar. Viveria abaixo de qualquer possibilidade de sobrevivência, tendo de pagar casa, alimentação e as restantes contas que nos atormentam nesta vidinha de remediado.
Alguns dos premiados dos Jovens Criadores acabaram por receber o Prémio Saramago, ainda há uma esperança. Enquanto isso trabalhas como informático, certo?
Já não tenho idade para o Saramago, é até aos trinta e cinco. Falhei por dois anos. Neste momento, sim, mas não sei por quanto tempo.
Caramba, eu estou a esforçar-me para chegares ao final da conversa com os prémios todos, mas já percebi que não vai ser fácil. E, pondo a literatura temporariamente de lado, como coabitam a Filosofia e a Informática?
De modo muito harmónico. O que me atrai na filosofia, para além da forma como recusa permanentemente o óbvio, é a estrutura lógico-dedutiva. E a informática, como é óbvio, segue uma estrutura muito similar. Um programa informático, na verdade, é na maior parte das vezes uma sequência de ifs (se isto então aquilo, senão aqueloutro e assim por diante). Não preciso de “mudar de cérebro” quando salto de uma coisa para a o outra.
Usas essa arquitectura lógica na tua escrita?
Na estrutura, sim. e é bom ter consciência dela para, por vezes, quebrá-la, que é também para isso que servem as regras.
Enquanto conversamos, chegou-me aos olhos um artigo, de ontem, do El País sobre Juan Goytisolo a sua sobrevivência e os prémios literários. Isto é sinal de que a grande arquitectura funciona mesmo. És um homem de crenças?
Gostava de acreditar em Deus, até porque todas as restantes crenças, seguindo a lógica que tanto me apraz, ficariam solidamente fundeadas nessa. Mas não acredito. Acredito que sou um norte magnético para os doidos de rua que, inevitavelmente, metem conversa comigo.
E acreditas no cliché de que para se ser artista é preciso ter a sua loucura?
É preciso sobretudo estar desperto, ter alguma intensidade no olhar. Talvez isso seja, neste mundo, uma forma de loucura.
Entraste para esta família, reunida em volta de um pudim, na altura do lançamento do número de estreia – MALA, em Lisboa. Nessa altura eu não sabia sequer o que se fazia num lançamento literário e mesmo assim não hesitaste em te juntares à festa de corpo e letra. Outra forma de loucura?
Gosto de festas, como sabes. Eram pessoas com as quais me dava, com muitas das quais continuo a dar-me. Outras desapareceram da minha vida ou do circuito da literatura mas, acima de tudo, sempre gostei de projectos como o da Flanzine. Carolices que se fazem por gosto e na tentativa de meter alguma areia nesta engrenagem que muitas vezes nos dilacera.
Como as leituras nas Galegas? Como começaram?
Sim, como as leituras nas Galegas, por exemplo. Eu e a Marta Raquel olhámos para aquele espaço, tão genuíno como simples e pensámos “olha, aqui está um bom sítio para fazer leituras de prosa, coisa que, ao contrário da poesia, ninguém faz”. E assim aconteceu, graças à generosidade de leitores e ilustradores tão doidos como nós.
Ainda nos falta falar do Lobo Antunes e de gatos. Por onde queres começar?
Lobo e depois gatos, para acabar bem 🙂
Acabar bem é com um prémio e duas cervejas. Mas então o Lobo voltou a atacar?! Desta foi o Dinis Machado o mordido.
Não dei conta, mas o lobo nunca dorme e raramente perde uma oportunidade para filar dentes em alguém. Nem os mortos escapam.
Mas continua a ser o melhor cronista da nação, não é?
Sim, mas também gosto de ler o Alberto Gonçalves e o Vasco Pulido Valente, além do Ricardo Araújo Pereira.
E o Nobel, achas que vai acontecer?
Não, esgotámos a cota para Portugal nos próximos 30 anos, acho.
E continuas aborrecido com o Dylan?
Claro. E do Dylan passei para o Manuel Alegre.
Logo tu que gostas tanto de música.
E de literatura, talvez seja essa a razão: gostar tanto.
És teimoso, Valério?
Sim, mas acho que cada vez menos nas coisas com menor importância.
Pois “o que importa não é a literatura / nem a crítica de arte nem a câmara escura”. Afinal o que importa?
Para começar, é não andar com ela torta (e não penses só em maldades, há muita coisa que pode e não devia entortar).
A esta hora, não devias estar a festejar o Santo António?
Demasiada gente na rua.
Tens tempo para ler, Valério?
Pouco, e acho que o aproveito mal.
O que queres ler e ainda não arranjaste tempo para?
Se te fizer uma lista, não terás tempo para a ler toda. O Tristram Shandy, o Ulisses, À la recherche du temps perdu, só como exemplo.
Somos também os livros que não lemos?
Somos muito os livros que não lemos mas que imaginamos, como as pessoas que não conhecemos mas que postulamos por tudo quanto já se ouviu falar delas.
Por falar em saber, gostas de saber a opinião dos teus leitores?
Sim, iluminam por vezes zonas dos livros para as quais não estava atento.
É verdade que existe o livro que o autor escreveu e o livro que o leitor leu?
É capaz de ser das poucas verdades universais da literatura 🙂
E depois a memória da leitura – um terceiro livro, talvez. Por falar nela, estás a escrever sobre uma forma de demência que a corrompe. Já há luz ao fundo do túnel?
Penso acabar em coisa de dois meses, se tudo correr bem.
Boas notícias, então. Sairá na Abysmo?
Sim, fechando a trilogia.
Já escreveste umas coisas para teatro. Qual é a tua ligação com esse universo?
É, sobretudo, enquanto espectador fascinado com o acontecimento do teatro a que alguém de que não me recordo chamava, com justiça, a mais completa das artes: tem um aspecto melódico, tem um aspecto narrativo e tem um aspecto plástico. Gosto muito de escrever para teatro, embora precise de mais tempo para adquirir as competências óptimas para isso.
Qual foi ou foram os últimos trabalhos que viste que te encheram as medidas?
Há algum tempo que não vou ao teatro.
Ainda o problema do tempo. Tens uma relação próxima com a Música, também. Serve-te de inspiração para a escrita?
Diria que tudo o que fazemos e tudo por quanto nos interessamos serve para a escrita.
Até os gatinhos?
Claro! Sobretudo os gatinhos!
O que seria a Internet sem eles?
Um enorme e aborrecido deserto de transações comerciais e pornografia.
Ainda continuas a responder aos SMS do Continente?
Se eles continuassem a mandar, sim. Mas de vez em quando bloqueiam-me :/
Ora aí está algo que merecia uma petição: o fim do bloqueio ao escritor. Por falar em escritores, foste à Feira do Livro?
Não, enquanto escritor não fui este ano. Só à civil 🙂
E preferiste os livros ou as farturas?
Devo ser o único português que não gosta de farturas 🙂
Ainda manténs a esperança dessa coisa de menino dos astros e das estrelas?
Mantenho, sim, embora seja cada vez mais difícil alimentá-la.
Há algum tema que gostasses de ver na Flanzine?
A morte, por exemplo.
E com a morte chegamos ao fim. Obrigado pela conversa, Valério. Espero que, para ti, tenha sido igualmente prazerosa. Um até já.
Eu é que agradeço, este formato é bestial. Nunca tinha feito uma entrevista assim 🙂
Julho 2017
Revisão: Gonçalo Mira
*A Mag é enfermeira, fotógrafa e dj. O resto da sua vida pode resumir-se com esta citação do filme American Beauty: “I guess I could be pretty pissed off about what happened to me, but it’s hard to stay mad when there’s so much beauty in the world”.