
Susana Moreira Marques nasceu no Porto, em 1976, e actualmente vive em Lisboa, onde trabalha como escritora e jornalista freelancer. É cronista na Antena 1 e colabora regularmente com o Jornal de Negócios. Entre 2005 e 2010 viveu em Londres, onde foi correspondente do jornal Público e trabalhou na BBC World Service. O seu trabalho já apareceu na Granta, Tin House, Words Without Borders, Lettre International, entre outras publicações internacionais, e recebeu vários prémios.
O seu primeiro livro, «Agora e na Hora da Nossa Morte», foi considerado um dos melhores livros de 2012 por vários jornais portugueses, e foi recentemente lançado em inglês.
Olá, Susana.
Li num artigo sobre ti, no P3, que existe algures um livro que hás-de escrever. Que livro é esse?
Olá, Azul.
Não sei que livro era esse de que falava na altura. Já tive vários projectos falhados. Estou agora precisamente a trabalhar num projecto falhado, mas que ainda não desisti de salvar…
Acredito que existem alguns livros que hei-de escrever, e é por isso que insisto nisto de ir escrevendo.
Há qualquer coisa de Beckettiano nessa atracção pelo falhanço?
Eu gostava realmente de falhar menos. Ainda tenho esperança de melhorar – quando for grande.
Mas falhar é fundamental, na aprendizagem, não é?
Sim. E escrever é tão difícil, ilude-nos tanto, escapa-se tão facilmente entre os dedos, que quase sempre há um sentimento de falhar. Nunca é como primeiro imaginámos ou como primeiro ouvimos.
Ouves as palavras antes de as escrever?
De certa forma. Ouço um tom, um registo, um modo de dizer, se quiseres, mais do que palavras concretas. Não há nada de místico nisto. Na verdade, acho que se trata de escutar-me a mim própria. E não é nada fácil conseguirmos aceder a esse registo que é o nosso mais próprio, mais verdadeiro, porque vivemos cheios de ruído. Pelo menos, para mim não é. Nem sempre estou em sintonia comigo própria.
Eu posso escrever sem ter encontrado o tom, e posso reescrever até que disfarce e fique ok, mas nunca vai ser um texto forte.
Mas não somos também esse ruído?
Nós somos muitas coisas, claro. E suponho que a voz de cada um mude ao longo do tempo e conforme as circunstâncias e o que nos vais acontecendo na vida. Não estou a dizer que o ruído é mau e que temos que nos isolar para escrever. Mas tem que haver uma integridade na escrita (nada a ver com moral) e nem sempre é fácil conseguir estar inteiro na escrita quando nos dispersamos por tantas outras coisas.
Quando alguém começa a escrever, é normal ouvir-se dizer que ele precisa de encontrar a sua voz. Concordas? Ou trata-se apenas de um cliché?
É um cliché, mas não deixa de ser verdadeiro. Mais uma vez, “voz” soa um pouco místico, mágico. Creio que é simplesmente encontrar a sua maneira de olhar para o mundo, os seus temas e, também, o seu estilo (ou, eventualmente, estilos). Mas isso é assim para todas as artes: as artes plásticas, a música…
Acho que é muito importante que um autor tenha uma ideia de texto. Não só ideias de conteúdo…
O equilíbrio entre a ideia e a palavra, é isso que procuras?
Suponho que entre a forma e o conteúdo, como todos os escritores desde sempre.
Talvez a palavra visão aqui ajude. Acho que um autor precisa de ter uma visão do mundo. Isso é mais importante do que ter “jeito para escrever”.
Fala-se muito do “ter alguma coisa para dizer”. Mas para mim é mais importante ter um olhar (mesmo que não se tenha nada para dizer).
Consideras importante que este se coloque em diferentes pontos de vista?
Considero muito importante. Quando falo em visão, não quero dizer que o autor tem uma determinada perspectiva sobre o mundo e que a está a expressar de forma quase programática. E quando falo em olhar não quero dizer que o autor deve olhar para si próprio.
Eu uso a palavra “olhar” no sentido de que o nosso olhar é sempre único. E que é isso que nós procuramos nos escritores, nos livros: um vislumbre de qualquer coisa que nós não vimos, e eles viram, mesmo num lugar que julgávamos conhecer bem.
Portanto, um olhar contaminado pelas nossas crenças, ideologias, gostos, emoções?
Não sei se o olhar do escritor quando escreve é o olhar do escritor quando está, por exemplo, no café a discutir política e as notícias ou a jantar com os filhos. Mas isto são generalizações. Suponho que cada escritor seja diferente.
Eu escrevo com os meus gostos, sem dúvida, digamos com as minhas inclinações. Mas tento não escrever com as minhas ideologias, por exemplo. Ou tento que isso não tolde, lá está, a minha visão, a minha percepção dos outros, da humanidade dos outros, para ver o mais possível. Para quem escreve não-ficção, mesmo não-ficção literária, isso é fundamental.
Susana Moreira Marques: O Philip Larkin tem uma citação muito bonita numa entrevista da Paris Review sobre o que é que ele tentava captar num poema: “… it seems as if you’ve seen this sight, felt this feeling, had this vision, and have got to find a combination of words that will preserve it by setting it off in other people. The duty is to the original experience. It doesn’t feel like self-expression though it may look like it.”
Uma discussão interessante, essa, sobre a possibilidade de a literatura não ser ficção.
Para mim é extremamente empobrecedor ver a literatura como sendo igual a ficção – e ao romance. Em Portugal, realmente não se é considerado escritor até se escrever um romance. Em muitas coisas, acho que a não-ficção literária está mais próxima da poesia. O Larkin é um bom exemplo: um tipo que nunca saiu de Inglaterra, não lia poesia estrangeira, um pouco tacanho e até preconceituoso e, no entanto, a poesia dele não é tacanha nem preconceituosa.
Quando escreves um olhar sobre uma realidade, a realidade que devolves a quem lê já não é a realidade. Isso não a torna ficção? Por exemplo, os noticiários televisivos estão carregados de elementos da ficção cinematográfica, como a música. Desta forma, potenciam a empatia emocional.
Acho que há muitas confusões entre o que é o jornalismo de informação e outro tipo de jornalismo. E entre parcialidade e ficção. Eu posso ter um ponto de vista sobre uma realidade – que é diferente de outra pessoa no mesmo lugar à mesma hora. Mas isso não quer dizer que eu esteja a ficcionar e a inventar personagens.
Ter um olhar sobre a realidade, ter um pensamento, ter a tua forma de descrever o que vês e o que pensas e o que sentes não é manipulação. Manipulação é usar a realidade para criar um determinado efeito ou atingir determinado fim.
A não-ficção não quer necessariamente dizer: o mundo é assim. É mais um olhar sobre o mundo. Com a única diferença de que as personagens não foram inventadas. Neste momento, acho que literariamente há muito mais para fazer na não-ficção.
Há pessoas interessantíssimas a trabalhar nas fronteiras do ensaio, a misturar géneros, a experimentar de uma maneira que é hoje menos comum na ficção. Interessa-me muito essa literatura. Mas o estar mais próximo da realidade, de uma forma mais directa, digamos, dá-nos qualquer coisa, acrescenta qualquer coisa, mexe connosco de outra maneira.
E, nesse sentido, não achas que falta espaço para se falhar?
Para mim, o falhar é comigo própria. Falhar em produzir algo que me parece que tem uma certa força, que acrescente algo.
És exigente na tua própria leitura?
Sim. Acho que quanto mais lemos mais exigentes nos tornamos. É preciso mais para sermos surpreendidos – e arrebatados. Isto enquanto leitora em geral. Em relação ao meu próprio trabalho sempre fui muito exigente – pode por vezes ser uma virtude mas é mais vezes um defeito.
E sentes mais prazer enquanto leitora ou enquanto escritora?
É um prazer diferente. Mas se tiver que escolher… Enquanto escritora, nos momentos em que sinto que consigo criar alguma coisa, ou escrever uma determinada frase, uma combinação de palavras que não estava lá antes.
Em que medida se torna um defeito?
Na medida em que me impede de concluir trabalho e pô-lo cá fora. Porque acho sempre que não está bom o suficiente… Ser demasiado exigente pode ser paralisante. Mas depois há fases. E se calhar, como dizias em relação à aprendizagem, há fases em que é preciso sentir que o que escrevemos não é bom, para depois ter as fases em que escrevemos coisas boas.
Como vês a geração literária portuguesa da qual fazes parte?
Não sei se me sinto parte de uma geração. Quer dizer, só se for por causa da idade que faço parte. É difícil enquadrar o meu trabalho numa tradição literária portuguesa ou nos diálogos sobre literatura aqui. Nesse aspecto sinto-me um pouco sozinha. Mas, respondendo à tua pergunta, acho que há escritores brilhantes nesta geração. Tenho pena de ver poucas mulheres. Acho que continua a haver um desequilíbrio em Portugal – não só em número mas na importância e na atenção que se dá aos escritores homens e às escritoras mulheres. Esperava que na minha geração – e no meu tempo – fosse diferente.
Ainda é um universo de excepções? Deve-se a quê, no teu entender?
Tenho pensado sobre isso – e não é um problema exclusivo de Portugal. A única coisa é que noutros países reconhece-se mais o problema e discute-se mais. Por exemplo, a minha editora britânica em 2018 vai só publicar mulheres, como uma forma de, vá lá, contribuir para corrigir esse desequilíbrio crónico. Acho que são muitos factores combinados, não há uma única explicação. Muitos desses factores são os mesmos que fazem com que as mulheres estejam menos representadas nas chefias de empresas ou na política e em muitos outros quadrantes da sociedade. Porque ainda se espera que sejam as mulheres que assumam as principais responsabilidades da casa, da família, etc. E mesmo nos universos de excepções como as artes isto ainda se aplica… Para se escrever é preciso ter confiança, ter ambição, ter persistência: tudo coisas para as quais as mulheres – mesmo as mulheres da minha geração pós-25 de Abril – não são geralmente educadas. E depois, it’s a men’s world. Cheio de referências, expectativas, ambientes historicamente masculinos. E as mulheres têm que impor a sua voz nesse mundo.
É um problema educacional, portanto. Mas também de falta de coragem editorial?
Sim, acho que sim. Acho que as editoras podiam fazer mais. Acho que é preciso coragem para fazer uma acção como, por exemplo, a que vai fazer a minha editora britânica, a And Other Stories, de fazer um ano de publicar só mulheres. É polémico. É arriscado para uma editora. E acho que há também um problema nos média. Em Portugal não há números nem estudos sobre isso – porque ainda nem chegámos ao ponto de perceber que há um problema – mas noutros países fizeram estudos sobre as recensões e artigos publicados sobre livros e a conclusão, por exemplo nos EUA, é que os livros escritos por homens têm mais imprensa do que os livros escritos por mulheres. Acho que existem preconceitos muitas vezes inconscientes que trabalham nesse sentido. Vai levar tempo a mudar. Também penso muito sobre como abordar estas questões. Não é fácil para nós, mulheres que escrevemos: como fazê-lo sem parecer que nos estamos a queixar?
No jornalismo acontece o mesmo?
No jornalismo não tanto. Há muitas mulheres no jornalismo. Acho até que em algumas redacções há mais mulheres do que homens. Mas: há muito menos mulheres nas direcções dos jornais e à frente das secções, ou seja, a tomar as decisões. E muito menos mulheres a escrever opinião. (E muitas vezes, as que há estão ali para fazer umas colunas sobre problemas de mulheres.)
Viver em Portugal continua a ser a escolha acertada?
Sim, eu gosto de viver em Portugal. Gosto de estar perto da família, de ter almoços de Domingo, essas coisas. Mas eu já não vejo nada como sendo definitivo. Acho que temos a sorte de viver num tempo em que se pode mudar e circular facilmente. Quem sabe ainda volto a passar uma temporada fora e depois volto outra vez?
Volta e traz-nos livros.
Espero que sim.
Já há algum na manga?
Como te disse, há um projecto falhado que estou a tentar salvar dos escombros. Vamos ver…
Entretanto continuas a escrever enquanto jornalista. Escreves sobre o que te pedem ou és tu que propões?
Neste momento faço apenas uma crónica semanal na Antena 1 – onde escrevo sobre o que me apetece. E faço uma rubrica de entrevistas no suplemento de fim-de-semana do Jornal de Negócios. Depois, curiosamente, tenho escrito mais em inglês para revistas independentes e revistas online, onde tenho a liberdade de publicar pequenos ensaios pessoais e literários.
Quando escreves em inglês, é nessa língua que pensas?
Sim. E consegui chegar a um ponto em que sinto que consigo escrever com a minha voz em inglês, curiosamente parecido com o que faço a escrever em português. Não tem tanto a ver com a minha capacidade de escrever melhor em inglês mas mais a ver com sentir-me mais segura na minha voz, suponho. Mas nunca escrevo coisas muito grandes. Não sei como seria tentar um trabalho maior… Continuo a ler muito em inglês. Passou a ser uma língua de leitura muito importante para mim. É curioso que o inglês, que é uma língua que toda a gente fala e aparentemente simples, leva muito tempo a apreciar em toda a sua potencialidade, toda a riqueza.
Como foi recebido o teu Agora e na Hora da nossa Morte, em inglês?
Para já, fiquei muito feliz com a tradução e com a edição, com o objecto final. O livro foi bem recebido e teve várias recensões boas, a maior parte no circuito independente, fora dos média mainstream. Há todo um circuito alternativo em inglês, que está mais atento ao trabalho das pequenas editoras e também à literatura traduzida (que continua a ser um nicho no mundo de língua inglesa). O que foi mais interessante para mim, por um lado, foi o facto de poder chegar a vários países: o livro levou-me não só ao Reino Unido, mas à Irlanda, aos Estados Unidos e a sítios insuspeitos como um festival em Bali organizado por uma australiana. E, por outro lado, o facto de sentir que o meu trabalho dialogava com uma série de autores novos de língua inglesa e de coisas que estavam a acontecer nesse mundo da não-ficção e que eu desconhecia.
Agora, já com uma certa distância, como vês toda a experiência que a construção dessa obra proporcionou?
Sinto-me privilegiada por ter tido a oportunidade de fazer aquele trabalho. Pessoalmente, foi uma experiência muito bonita e marcante. E em termos do meu trabalho, deu-me realmente a possibilidade de escrever com liberdade e de encontrar – voltando ao princípio da conversa – a minha voz, que eu tinha apenas começado timidamente a usar.
E com um tema nada fácil.
Sim, nada fácil. Mas isso fez desde logo parte do desafio. Eu sabia que era um tema duro e difícil de abordar, mas também sabia que se o conseguisse fazer, podia ser extraordinário. É o mais universal dos temas.
Mas fez-te conviver com outro: a dor. E ao sobreviver a ela. Neste momento há várias famílias a senti-la com a tragédia de Pedrógão Grande. Há uma atracção natural por estas histórias, por parte de quem escreve?
Estar perto da morte dá uma curiosa claridade sobre a vida. E pode ser quase eufórico, nesses momentos, perceber que se está vivo. Acho que a tragédia faz com que as contradições humanas estejam mais em evidência – e isso é interessante para quem escreve. Depois, acho que tenho o bichinho do jornalista em querer ser testemunha da história. Sempre que algo dramático ou radical acontece parte de mim quer estar nesse lugar. De qualquer maneira, para mim escrever tem qualquer coisa sempre de ser testemunha. Do nosso tempo. E nem que seja do que acontece por baixo da nossa janela. Mesmo que seja o mais banal acontecimento. Para mim, é importante esse papel de preservar. Qualquer coisa. Uma experiência, como dizia o Larkin. Mais do que a morte, acho que me aflige o esquecimento.
Quando tomaste consciência desse bichinho, em ti?
Só quando comecei a fazer jornalismo. Eu antes trabalhava em cinema e fazia muita ficção e embora toda a gente achasse que andava a contar histórias sobre a realidade eu sentia-me distante da realidade, como se não fizesse bem parte do mundo. Acho que o jornalismo faz-me sentir parte do mundo, faz-me estar próxima das pessoas, pessoas que eu nunca conheceria de outro modo. É isso que eu gosto e que retiro do jornalismo. Acho que neste momento o jornalismo para mim é mais um método do que um fim.
Fiquei curioso com esse passado ligado ao cinema. Tratava-se de escrita?
Não. Trabalhava nas equipas de filmagem. Era anotadora.
Foste treinando o olhar?
Sim, foi um treino extraordinário para mim. Acho que de certa forma ajudou-me a aprender a ver.
A presença da fotografia do André Cepeda no teu livro tem que ver com esse lado cinematográfico?
Não. Eu quando propus à Fundação Gulbenkian ir a Trás-os-Montes e fazer um livro, desde logo achei que podia ser interessante ter fotografia. Que tornaria o projecto mais completo. Na verdade, acho que teve mais a ver com o meu lado jornalístico, de estar habituada a publicar textos com imagens e a fazer reportagem com fotógrafos. Mas convidei o André porque me pareceu que ele podia trazer uma abordagem diferente, precisamente porque ele não é fotojornalista e tive curiosidade de trabalhar com um fotógrafo que não faz normalmente reportagem. Curiosamente, naquela altura, o meu trabalho no cinema parecia-me quase que tinha acontecido numa outra vida e fiquei surpreendida, uma vez que o livro estava pronto, de encontrar influências cinematográficas na minha escrita.
Há algum tempo, afastaste-te do Facebook. Aborreceste-te com as redes virtuais?
Eu nunca fui muito activa no Facebook, mesmo quando tinha uma página pessoal. Agora tenho uma página de autora com informação básica sobre mim e onde vou dando novidades do meu trabalho e partilhando alguns textos e crónicas.
Mas tens a noção do poder que as redes sociais exercem no quotidiano? Até a nível do jornalismo?
Sim, tenho noção e não me agrada.
Mas é algo irreversível, não é?
Sinceramente, não sei. Não tenho muitas opiniões formadas sobre as redes sociais e o futuro das redes sociais. Aliás, não tenho opiniões formadas sobre quase nada…
É por isso que vivo de fazer perguntas. Quer dizer, ganho a vida…
Podemos trocar temporariamente, queres fazer-me alguma?
Tu que és tão facebookiano, o que é que te atrai no Facebook?
Verdade, ainda que tenha perdido parte do entusiasmo. Havia uma certa inocência inicial que com o tempo se foi perdendo. A bidimensionalidade deste espaço tornou-o claustrofóbico. Uma espécie de estufa de ódio e frustração. Mas respondendo à questão, julgo que a proximidade (ainda que virtual) permite criar projectos como a Flanzine que de outra forma não teria chegado onde chegou.
Ainda hoje conseguimos, com um leilão, obter 100 euros para ajudar as vítimas dos incêndios de Pedrógão Grande. É aí que reside a sua força.
Tu também escreves?
Sempre gostei de o fazer mas nunca levei isso muito a sério. A minha formação é em teatro, como actor. Nos tempos da ESMAE, ainda no século passado, já ansiava por algo como o Facebook, pois espalhava, nos quadros dos corredores, poemas e desenhos meus. Não me contentava com o palco. O ego é tramado – exigente!
Depois escrevia para as encenações que fazia. Gostava de criar tudo de raíz. Ser uma espécie de deus.
Caramba. E continuas a criar para palco?
Só para o do Facebook. Ahahaha. Sim, na verdade, sim. Há um evento em Vila do Conde – Queima do Judas; tenho sido um dos responsáveis pela dramaturgia. Envolve mais de cem participantes, com música, circo e teatro.
Recentemente, co-escrevi uma curta-metragem: Vaza. Estará no Curtas de Vila do Conde, em Julho. No fundo, há esta vontade de me expressar, de comunicar, independentemente da forma. Oficialmente tenho um livro publicado: Livro do Amo. Ilustrado pelo João Concha. Até faz parte do PNL. Não tivemos foi dinheiro para mandar fazer os autocolantes.
Tu vives mesmo em Vila do Conde?
Sim, vivo. A 5 minutos do mar.
Que maravilha. Gosto muito de Vila do Conde. Tenho saudades desse mar do norte.
É uma terra com uma estranha densidade populacional artística. Tu és uma mulher do norte, também?
Sim, nasci no Porto. Os meus verões eram passados na Praia de Leça. Se pudesse, agora voltava para o Porto.
O Porto cresceu nos últimos anos. Depois do marasmo Rui Rio.
Lisboa está com uma estranha densidade populacional, ponto.
Mas há quem receie os excessos provocados pelo Turismo.
Espero que não fique tão mau como já está em Lisboa.
Mais alegre está!
E amanhã é São João! Como gosto dos balões de São João, de ver o céu cheio de luzinhas. Sou um bocado como as crianças, gosto de coisas com luzes e cores. Também gosto do Natal.
Verdade! Também o celebramos em Vila do Conde. Há dois anos, veio cá o Quim Barreiros. Nesse Junho, tínhamos dedicado a Flanzine à música pimba. Ora, era imperativo encontrar-me com ele para lhe oferecer a revista, pois ele estava presente em vários poemas e ilustrações. Assim foi. Antes do concerto lá fui recebido por ele nos camarins. Lá tirámos umas fotos e eu vim com o último disco dele.
Adoro essa história, o Quim Barreiros com a Flanzine.
Tenho uma autografada por ele. Deu-me também um cartão com os contactos dele. Nesse ano, fomos apresentar esse número ao Festival Paredes de Couro, no palco Jazz na Relva, com o Isaque Ferreira. E este lembrou-se que podíamos fazer uma brincadeira com o Quim Barreiros. Gravar um depoimento dele ou algo parecido. Eu timidamente lá liguei para o número do cartão, à espera de ser atendido pelo agente. Do outro, atendem. Reconheço-lhe imediatamente a voz. Digo eu: Quim? Ahahaha
Muito bom.
Mostrou-se logo disponível. Mas não chegou a acontecer por questões técnicas. Dizia ele: “tudo é possível, meu querido.” Uma maravilha.
Há alguma pergunta que eu devia ter feito e por amadorismo me tenha escapado?
Acho que nunca há perguntas obrigatórias. Só aquelas que tu querias mesmo fazer.
Há aquelas que só mais tarde irão surgir mas faz parte do processo. Uma entrevista, ou conversa, é também as perguntas que não fazemos. Eu fico contente que tenhas partilhado parte do teu tempo a esta conversa. Agradeço-te, por isso. Foi um prazer.
De nada. Gostei muito. Engraçado isto de falar a escrever no chat. Acho que temos aqui uma estreia nacional.
Julho 2017
Revisão: Gonçalo Mira
*Vitorino Coragem é fotógrafo e jornalista. Formado em Sociologia, trabalhou como redactor no jornal A Capital, Diário de Notícias, Folha de São Paulo e La Opinión de Granada. O seu registo fotográfico privilegia o corpo e a expressão corporal. Maria Bicicleta, Light and Sea e Em palco são os seus projectos mais recentes. Faz a cobertura de eventos culturais, especialmente nas áreas da poesia e da performance. Colabora frequentemente com companhias de teatro e festivais literários. É um activista do uso da bicicleta na cidade de Lisboa.