Carne — Bárbara Fonte
“Carne” é um filme sobre o princípio da palavra obsceno. E talvez, por isso, o autobiográfico, a qual me debruço no restante trabalho artístico que venho a desenvolver, se transforme em memória comum, evocando Adão e Eva e remetendo ao universo das imagens vulgares (por repetição exaustiva das suas alegorias e recheios simbólicos). Este é o primeiro projeto em que explorei um tema particular com um enquadramento.
A palavra obsceno tem uma relação de oposição relativa ao correto, ao conveniente, ao adequado, à moral e à decência que, por ser algo subversivo, turbulento e potencialmente desordeiro, é um campo de força, de resistência, de proveito e de interesse, e para mim, positivo e de potencial. Mas a palavra obsceno arrasta facilmente conteúdos do pornográfico e do indecente aos quais sou discordante na sua pessoal aplicação artística. Isso pela facilidade com que estes operam ao nível das emoções primárias, arrasando com a potencialidade dos sentimentos mais reais (não me refiro à nobreza, que é inteiramente outro assunto). Refiro-me à realidade das manifestações humanas que são honestamente instáveis, movendo-se em diversas dimensões. A pornografia talha a passagem lúbrica entre a emoção e o pensamento tornando o lugar bidimensional, agindo apenas na camada do estético e do prazeroso, tal como as imagens exageradas de deleite dos corpos humanos nus, onde a existência da carne supera a existência de um corpo (mente incluída). Nada contrário ao erótico, ou ao corpo por si mesmo, ou ao corpo-carne. Porque pornográfico é carne claro, mas não viva, não com o pulsante ritmo da ferida. E isso é coisa que ultrapassa o prazer veloz, desembaraçado e fácil do pornográfico. Talvez, para mim, a porta para o corpo (seja carne ou cérebro) é a intervenção do feio, do rústico, do grosseiro, do despretensioso, do íntimo e do vulgar cheio de sentidos plurais, de meias sombras, de lugares escondidos e de intenções barrocas.
Tremo perante a possibilidade de existir uma brecha no meu trabalho onde o grosseiro e o vulgar não se provejam de uma noção evidente de realidade. E por ser real, que seja beijada pela provocante relação amorosa entre o belo e o feio. Assim, a palavra obsceno repousa de novo no seu sentido mais plural: de lugar fora do olhar, para além do olhar; mais real que a realidade; fora de cena, aquilo que existe para além da encenação (sendo ela também lugar de ação); dar a ver o teatro por detrás do palco; lugar do ordinário, do vulgar, do real. A palavra obsceno munida do seu sentido primordial, de “funesto”, de “sinistro” de “mau agouro” (como as aves da noite do autor latino Aulo Gelio), cumpre melhor a tarefa de comunicar realidade. A realidade é coisa assim obscena, feia por vezes, bela por isso. Porque as sombras fazem parte da luz e porque, a meu ver, elas são a única forma de nos reunirmos à realidade. E fazem-no de forma extremamente violenta e simultaneamente sincera. Subversão e hábito não são opostos. É neste ponto que alicerço o trabalho que apresento. Obsceno como provocação à moral ou como algo do pornográfico é-me integralmente alheio. Olhando todo o meu trabalho, e mais concretamente o filme “Carne”, reconheço o meu imutável desejo por cuidar de uma realidade. Cuidar criando-a, recriando-a, vestindo-a, lavando-a, penteando-a, ensinando-a… como se a realidade fosse criança difícil e dócil em simultâneo.
Tal como em outros filmes que criei, tudo se passa no limite dos braços esticados, isto é, no estrito espaço de uma realidade. E por isso, de filmagens curtas, secas, de movimentos ensaiados e artificiais, tal como a realidade prega, tal como se fixam as memórias e as sensações. E, apesar de o estar a chamar de filme, é um trabalho aberto, continuo, que não começa nem termina, não contém acontecimento nenhum, não contém passagem nem fragmento (mas registo ligeiro e compacto como um desenho em papel). O filme não tem pretensões de ser película de cinema. É, para mim, um lugar de performance. A todo o momento, sinto que o reformulo, acrescentando e retirando cenas ou que o completo no seguinte projeto. Por esse motivo se revelam óbvias nas filmagens a assumida rudimentaridade da técnica cinematográfica deixando claro ao observador os mecanismos da comunicação ou ausência de comunicação. Os efeitos peculiares e os adereços usados pertencem ao doméstico e despretensioso lugar comum onde, para mim, se revelam aos olhos o maravilhoso estado do real. Neste sentido, lembro que o real revela-se, por vezes, na magia, na ilusão, na fé ou na crença, como o vinho se transforma em sangue ou a hóstia em corpo de Cristo. O lugar do falso pertence à realidade. Acrescenta-lhe dimensão e impulso. O falso sangue é mais espesso e corpóreo do que o real. Ver a linha com que as peças se movem (como os fios de uma marioneta) fazem parte do real mesmo que nos obriguem a um compromisso com a fantasia. A realidade é um lugar de fé nas coisas comuns, vulgares, domésticas, caseiras. É necessário fé para morar em realidade. E a realidade, a meu ver, opera em casa. Os meus filmes tem um cenário doméstico mesmo quando surgem planos de paisagens exteriores. Eles existem como janelas (propondo imagens sempre de dentro para fora). A casa funciona como o lugar das máquinas que pensam, articulam e executam a realidade. Para terminar, não posso deixar de referir, que a comando dessa máquina coloco a mulher. Não me importam os vícios ou honras do chamado vigor, confrontação e luta do feminino na arte. Uso a mulher porque é um trabalho autobiográfico. Ela existe porque é a minha realidade.