Tudo se finou num belo dia de 21 de Junho de 2019, quando uma agência de viagens de luxo nos ofereceu o percurso mais exclusivo à face da Terra: O Árctico seria navegável pela primeira vez e nós, os mais abastados do mundo, seríamos pioneiros nessa travessia.
Foi durante o verão anterior a tal empresa, este que vocês estão a viver agora mas que nós já vivemos e sabemos como acaba, que o maior iceberg do mundo, com 7 milhões de toneladas, derreteu, causando a subida do nível das águas em muitos metros, fazendo desaparecer cidades icónicas, como Veneza ou Amesterdão, países como o Bangladesh ou ilhas como a de Madagáscar, matando milhares, desalojando milhões e causando fome e desespero, aí a partir lá do final do vosso outono.
Ignorando o relato catastrófico do que se desenrolava a sul do planeta, partiríamos para a inédita viagem deixando países para trás a votar em tiranos com o nosso apoio, a matar opositores com as nossas armas e a desbravar florestas virgens enquanto assinávamos negócios para venda de plantas (e outras coisas) geneticamente modificadas. Business as usual, nada de mais. Preparados para encher os nossos aparelhos electrónicos de fotos magníficas, a vida de cocktails e de requintada gastronomia, nunca nos ocorreu o que a seguir se passaria e se passou. Quando concluíamos a inesquecível jornada por este novo e desconhecido continente, uma zona até então inalcançável e que, na prática até então não existia, e nos preparávamos para regressar a casa fechando com chave de ouro as férias das nossas vidas atravessando uma novíssima cascata niagarense do Árctico, fomos aconselhados a permanecer em mar alto. Sem grande explicação. Mas de forma peremptória. Passou um dia, dois, três, uma semana, duas, enquanto as temperaturas desciam. Árctico voltava a congelar-se à nossa roda, apertando-se contra os cascos do nosso paquete turístico enquanto o capitão se recusava a navega-lo, deixando-se ficar sentado a jogar paciências, à bisca e à canasta. O cozinheiro chefe recusava alimentar-nos. As responsáveis pela limpeza dos quartos emudeceram simultaneamente e passaram a tricotar naprons (lindíssimos, por sinal, teriam ficado lindos sobre a mesita de noite) e os comediantes e músicos contratados adormeciam por sestas indeterminadas mesmo (e apenas) a horas de espectáculo.
Passados 23 dias de fome e angústia insuportáveis e, sobretudo, de incompreensível sensação de incapacidade para quem está habituado a estalar os dedos para trincar uma lagosta, começamos a receber aterradores relatos do resto do mundo na única frequência de rádio que, estranhamente, parecia sintonizada apenas na TSF. Um jogador de futebol muito habilidoso, a filha de um governador corrupto e um traficante de diamantes, dono de uma petrolífera, traduziam-nos com fervor e detalhe todas as reportagens radiofónicas. Na nossa ausência, as nossas propriedades tinham sido incendiadas ou vandalizadas, e algumas celebridades, assim como CEO’s que, infelizmente, não partilhavam as suas férias connosco por motivos de agenda, tinham sido capturados, brutalmente agredidos ou mesmo abocanhados por uma população enraivecida e esfomeada e a quem desconhecíamos tamanha determinação até então. Até que chegou um telegrama. No bico de uma gaivota. Com um pedido. Em duas frases:
Hoje, às 11.59pm, queremos o congelamento de todas as transacções na Bolsa e de toda a produção industrial por 7 anos. 7 anos sabáticos! 7, para recuperar a confiança no futuro e sobretudo exercitar a utopia em tempo real. Para reequilibrar e calibrar o ser humano para que não se desequilibre de vez e com ele tudo o resto. Para redistribuir toda a terra, toda a energia, todo o conhecimento.
Tentamos acenar com dinheiro. Telefonar para mandar vir helicópteros. Ameaçar com as milícias, as armas químicas e os detectives privados a que todos tínhamos acesso. Pela primeira vez as nossas fortunas não valiam de muito. Não valiam de todo, e isso era inconcebível, inaceitável, imperdoável. Ninguém, nem o gelo, abria mão do desastre que preferia ao enjoo da neutralidade e do pasmo a troco de um mísero salário mínimo.
O resto do mundo tinha descoberto que para mudar o mundo bastava viver melhor. E nós? Como é que ficamos?
Foi só neste momento, quando nos reconhecemos como mortos, que se tornou importante sobreviver o maior tempo possível…
Mas era tarde. Para nós pelo menos, que já não tínhamos como saber estar à altura do que desconhecíamos: a realidade. Foi nesse momento que percebemos as palavras proféticas de um caro colega empresário de sucesso do século passado, de seu nome Mao Tsé Tung:
Reina a desordem debaixo dos céus, a situação é excelente.
Chegou uma nova gaivota, um pelicano, e um abutre, e por terra, não se sabe bem como, entrou no barco um chacal. Todos com telegramas no bico ou entre dentes: todos com petições diferentes. Qual deveríamos atender primeiro?
- O movimento Contra o 1% deseja ver todos os operários industriais do planeta subsidiados para que deixem de produzir durante 7 anos, reduzindo drasticamente as emissões de carbono, ganhando tempo para a restruturação de todos os sectores da sociedade e permitindo a regeneração da Terra. Podem chamar-lhe rendimento mínimo, apoio ao desemprego temporário, subsídio de restruturação agrícola, industrial, financeira, o que quiserem. Como?
- A Lakshmi Mittal, magnata do ferro, e Eiki Batista, ex-Governador do Brasil e detentor das maiores minas de ouro do mundo, pedimos que fechem todas as suas minas enquanto garantem os ordenados de todos os seus mineiros durante 7 anos, oferecendo-lhes o tempo e o dinheiro para refazerem as suas vidas, as suas casas e por vezes os seus países, após décadas de escravidão e exploração.
- O movimento 1% +1 exige a interrupção de todas as acções de caridade e filantropia e o compromisso, por parte desses 1% (sob o visionamento dos 1), de deslocar até 80% das respetivas fortunas individuais para o apoio de planos de mudança radical do estilo de vida global e Think Tanks internacionais onde se discuta o futuro das coisas, o futuro dos pomares, o futuro das colheitas, o futuro dos bichos, o futuro das pessoas, o futuro dos pechisbeques, o futuro das traquitanas, o futuro do ar, o futuro da água, do plâncton, do manto de lava e da crostra terrestre debaixo desta mesma estratosfera!
- A Madeleine Gates eLaurene Powell Jobs pedimos que garantam, pessoalmente, um a um, a cada um deste movimento, um computador portátil para todos os que ainda não têm um, assim como acesso gratuito à educação em todos os cantos do mundo. 5% dos lucros de cada uma dão com facilidade para construir mais escolas e distribuir livros por todos.
- À esposa deMukesh Ambani, pedimos que inicie, em nome do seu marido, e enquanto toma um cocktail granizado no Árctico, um processo de devolução de todos os subsídios estatais e de todos os apoios à sua indústria de petróleo e deseja que esse dinheiro seja aplicado no desenvolvimento das indústrias de energias renováveis. A devolução pode ser faseada e em forma de cupões a utilizar para consumo de produtos obtidos, construídos, feitos e desfeitos inteiramente com energias renováveis, transformação da sua própria empresa focando-se no futuro eólico e hidráulico da sua fortuna, e no impedimento imediato de mais um buraco fractal que seja no planeta.
- Pedimo encarecidamente a Paris Hilton que lance a sua campanha “no more easy-jet-set tourism” transformando a cadeia de hotéis de 5 estrelas do pai no projecto artístico e comunitário intitulado Alexandria que abarcará diversos projectos teatrais, performáticos, com equipas inteiramente compostas por refugiados, emigrantes, deslocados, estrangeiros, expats, e o diabo a quatro (se estiver fora do seu lugar). Da nossa parte prometemos constantes likes, selfies à frente dos edifícios, fotos de instagram e partilhas constantes de todas as actividades ditas culturais, assim como da sua vida privada.
- Pedimos a Carlos Slim Helú, o magnata das telecomunicações, que providencie ligações telefónicas e de internet para todos e que transforme o mundo inteiro numa smart city. O acesso deve ser para todos, o que uns e outros fazem com isso deve ser debatido em próximas petições, conferências e encontros vários para o efeito durante os próximos 7 anos.
- A Li Ka Ching, detentor do maior império de construção civil no mundo, detentor de 13% do tráfego de contentores mundial, principal fornecedor de água potável e sistemas de esgotos, e empregador de mais de 270 000 pessoas em 53 países, pedimos que nos prometa converter o seu império num negócio sustentável, começando já na próxima segunda-feira com a acção, meramente simbólica neste contexto, de parar toda a sua produção de brinquedos e flores de plástico.
Em suma pedimos ao 1% que trabalhe durante 7 anos para que nós possamos recompor o que destruiu com o que trabalhamos para eles outrora, e convidamos todos os políticos a fazer umas férias prolongadas, a abandonarem o seu “mar de cristal silencioso” e a vaguearem pelas ruas comendo sandes pré-aquecidas em quiosques ou estações de serviço, a lerem literatura, a descobrirem os circuitos de arte alternativa, assim como a conhecerem aqueles que neles votaram.
Por último, hoje, às 11.59pm, foi já pedido o congelamento de todas as transacções na Bolsa, acompanhada da reconversão imediata de todos os exércitos nacionais e transnacionais em brigadas de descarbonização e de combate à desflorestação.
Desejamos oferecer à sociedade 7 anos sabáticos para pesquisa tecnológica, cultural, artística e social, para reequilibrar a relação entre o Homem e tudo o que o rodeia, recuperar a confiança no futuro e sobretudo exercitar a utopia em tempo real.
Abandonemos de uma vez por todas, em 2020, o conceito de trabalho do século XIX, e procuremos um outro valor, quem sabe mais verdadeiro ou mais adequado para os seres humanos neste planeta. No final, a resposta poderá até ser demasiado evidente: Para mudar o mundo basta viver melhor.
É por tudo isto que vos gritamos, a todos vós que têm um milhão:
Ricos do mundo: Uni-vos!
Como quase dizia Almada, já têm tudo, só vos faltam as possibilidades!
De pé, ó vítimas do excesso, ó prisioneiros da ganância!
Que a fome seja a nossa, de mudança!
Temos 7 anos para redistribuir a terra, a energia, a cadeia alimentar, o conhecimento.
Não se esqueçam: São vocês o Ocidente, o 1% que pode dizer:
Yes we can!
Aceitamos sugestões, contradições, redacções novas de cada alínea, reclamações, projectos piloto, alterações no programa, cronogramas, planificações, envio de artigos com construções e mudanças fazíveis e outras. Já dizia o filósofo, não o da desordem mas o que acreditava no constante movimento das esferas: “não sabia que era impossível, fui lá e fiz.”
(still To be continued).