Mickaël de Oliveira — Não, Verónica, não.

Era verão, estávamos sentados e suados expostos ao calor e à luxúria. A casa não era obviamente nossa. Sabíamos perfeitamente que o usufruto do luxo temporário servia apenas para nos motivar (um dia) a ultrapassar nossa condição de inquilinos.  E o nosso sistema económico é tão certeiro que, para isso, inventou o crédito, usado por alguns de nós para saldar sem preocupações os gastos estivais. As nossas conversas diurnas ou nocturnas implicavam sempre sentirmos os nossos cus húmidos, ora da água ora do suor, e um peso anómalo que imprimia o balanço das pernas e dos braços do norte para sul e vice-versa. 

Dialogávamos sobre assuntos infinitos, mas nunca, por exemplo, sobre o limite do dinheiro, tema que tentávamos despachar, empurrando-o para debaixo dos malefícios do grande capital. A própria questão ecológica, que costumava unir as nossas inquietações durante o ano, de Setembro a Julho, em que partilhávamos práticas domésticas, únicas e mais ágeis de poupança de água e reciclagem, tornou-se naturalmente num assunto aborrecido. Desejávamos uma simples piscina cheia, azulada, transparente e sem cloro, sobretudo para os gémeos do Sérgio e do António que costumavam lançar-se como obeliscos para o fundo. Na verdade, queríamos sonhar fora das contingências quotidianas e pobres a que a nossa sociedade nos tinha habituado. Pequenas e grandes catástrofes em permanência, a propagação da desgraça alheia que fortalecia o narcisismo social de cada cidadão, culpado por não viver um verdadeiro tormento e por reivindicar a posteriori bugigangas – à luz da digna tormenta – para melhorar as condições do seu lar. Enfim, as férias correspondiam à suspensão da nossa moral abençoada pela piscina em que pontualmente nos continuávamos a purificar para confirmar a sua ausência.

Mesmo assim, os pais dos gémeos passavam o dia a tentar proteger as crianças de perigos inexistentes, besuntando-os com todo o tipo de óleos e cremes para evitar “futuros cancros”, como tão bem repetiam. O Marco tentava limitar o acesso da boca às suas unhas, desviando os dedos para pentear a sua crina cinza, enquanto que a sua mulher Brenda, de ascendência inglesa, experimentava chapéus de praia com diferentes profundidades e larguras, que víamos desfilar na varanda enorme da cozinha, a partir da qual os gémeos se davam a mergulhos espectaculares. No terceiro dia de férias, um deles tinha saltado da varanda depois de ricochetear num guarda-sol de esplanada junto à nossa sagrada reserva de água e que servia de resguardo para peles velhas queimadas, e não de trampolim. De resto, ninguém se tentava proteger de nada, nem mesmo da obesidade. Era como se procurássemos comer para os meses de fome – sobretudo melancia, chocolate e queijo, sob diversos formatos e arabescos. Se para a maioria a palavra férias significa cuidar do corpo, por se tratar de um período de grande exposição física, nós tentávamos abafá-lo num longo sofrimento hepático, compensado com longas sestas e litros de água pura ou misturada em boas percentagens nos nossos cocktails preferidos. 

A Verónica estreava-se comigo no prazer veranil, a custo, é certo. Ela acompanhava a degradação provocada pelo descanso com alguns comentários sobre saúde e lifestyle e que, por isso, eram fora de contexto. De facto, todos, menos ela, concordavam que o mês de Agosto era o único momento no calendário em que qualquer niilista poderia exercer livremente a sua crença. Considerava a Verónica um indivíduo completo, quer pela sua formação em filosofia e pós-graduação em estudos sociais, passando pela sua ligação à fé primordial judaica, quer pela sua beleza obtida não sei onde, a não ser na própria vida. Os traços que a definiam eram proporcionais e desenhavam-se ao longo de um cabelo loiro e farto, de uma pedicure cinzelada a vermelho ou azul e de uns olhos verdes que, tal como a sua boca, estavam sempre bem abertos. A juntar ainda à magnífica decoração, uma magreza implícita, um cu hirto, macio, virado para cima, invulgarmente semelhante ao do António. E, espanto meu, nenhuma coloração enunciada se encontrava no património genético familiar, por si fraco (e doente), que tinha constatado através das fotografias de família que costumava guardar na carteira e que revelava uma autêntica árvore genealógica em retratos semelhantes ao Quem é quem? É por isso que ela gostava de repetir, de tempos a tempos, “amo o meu sangue, mas devo tudo à vida”, com o ar de quem tinha sido uma ex-monarca convertida à força em republicana. 

A Verónica não sentia qualquer complexo por ser bela, pelo contrário, afirmava com graça que o seu corpo provinha de um cruzamento entre a Vénus de Milo e o arquétipo do sobrevivente de Auschwitz. A sua beleza era verdadeiramente evidente, vestida com a transparência do costume ou o bikini monocromático com padrões subtis, espalhava-se ao redor da piscina como uma doença voraz. No entanto, como tudo o que é evidente, a sua beleza tornou-se para todos (menos para ela) um tema tabu. Ninguém gostaria de depositar um comentário sobre uma bochecha de fora que pudesse ser interpretado como sexista ou (filosoficamente mais catastrófico) objectificante, quando todos os homens ali presentes eram homens novos, ajustados ao respeito necessário da sedução. A única pessoa que podia comentar sem danos e tocar-lhe no ‘rabinho’ (nome aceite por ambas as partes) – o único que naquela colónia não suava – era a Brenda que o fazia de forma tão efusiva quanto confusa, entre a troca de chapéus. A mim, restava-me acariciá-la em silêncio e em privado, antes ou depois do tele-ioga, a custo, enquanto que ao longe, pela janela do nosso quarto, atirava o meu olhar vidrado para a baía de uma praia a que resolvi nunca ir. A disponibilidade do seu corpo, continuava, depois de três meses de relação, um completo mistério, tanto quanto à sua presença ao meu lado, como nos protocolos de aproximação que mudavam todos os dias. 

Sem querer, a Verónica tornou-se o reduto moral das nossas férias, ao partilhar a qualquer hora do dia, enquanto bronzeava harmoniosamente até aos recantos angulares do seu nariz, a ideia de ‘corporalismo’, com certezas de quem tem tudo.

Para contentar a Verónica, o Sérgio e o António, que procuravam zelar pela alimentação dos gémeos, o Marco, meu amigo de faculdade, resolveu preparar um jantar alternativo às sandes de queijo prensado com pringles. Era, de facto, cozinheiro de profissão, arte que desenvolveu depois de um longo curso e sucessivas pós-graduações em Letras que acabaram extintas no virar do milénio. Numa bandeja prateada, um robalo inteiro, apenas esventrado, com um olho virado para o céu estrelado e outro seguramente para o cu da minha namorada. Creio que se tinha reunido naquele momento a conjuntura ideal para a conversa que dilatou a hesitação das garfadas e das mil extrações de espinhas para o prato. 

O jantar estava preparado, menos o peixe que me parecia mais apto a ser velado do que a ser comido, pelo cheiro forte a matança fresca. E, por isso, espalhei pela enorme varanda da sala, onde a mesa tinha sido posta, dezenas de velas de citronela, sob o pretexto de proteger as crianças das melgas venenosas. A forma particular e leve como a Verónica se vestiu nessa noite motivou-me a acender mais velas com aromas, desta vez no nosso quarto e respectiva casa de banho,  com o objectivo de concluir, depois do jantar, a única e verdadeira expectativa comum à nossa vida conjugal.

Ao dispor as velas com o feng shui certo,  lembrei-me subitamente do único motivo que faria com a Verónica viesse comigo de férias, com amigos meus que ela mal conhecia, depois de um início de relação atribulado: averiguar o nosso grau de empatia interpessoal e social e perceber os destroços da minha educação sentimental e cristã, arruinada pelos meus estudos e outros desgastes, cujo fim ninguém adivinhava. Não era um jogo a que me dedicava com frequência, porque, embora professor, odiava avaliações, testes e modos de sondar se certos pensamentos poderiam satisfazer uma dignidade abstracta e geral, merecedora de uma alta ou baixa benção numérica. No entanto, não levei a mal o facto de ela estar a pensar em tais provas, solicitando-lhe até a opinião acerca da roupa a levar e dos cremes solares a usar. E dos livros a ler. E das barras de cereais mais apropriadas para o verão. Pouco importava se ela fosse avaliar a minha mesquinhez ou o ângulo da minha boca em relação à esfera do prato, enquanto cuspisse espinhas com o movimento vaivém de uma língua com medo.

O Marco, que já durante os tempos de faculdade tinha o dom de iniciar as conversas mais profundas, proferiu uma única frase que nos deixou um pouco perplexos, ao erguer o facalhão em direcção ao peixe: “quem fica com que parte?” Perante o silêncio, porque não havia naquelas cadeiras de palha apreciadores genuínos de peixe, o cozinheiro continua com: “quem fica com a cabeça?”. Ninguém tinha pensado nisso, nós, comedores de bons bifes, a não ser a Verónica que, pelo seu passado veganista, tinha analisado os nervos de todos os bichos. Apenas as crianças queriam optar pela cabeça com a simples vontade de lhe poder vazar os olhos. A minha namorada, com o seu gosto conhecido para a provocação, respondeu-lhe a sorrir com uma espécie de charada que determinaria a nossa noite: “Se fossem este peixe, qual é parte que gostariam de ver comida?” A Verónica não queria ter filhos, argumentando que já éramos gente suficiente a degradar esta terra e, talvez por isso, não tivesse percebido o impacto que a questão poderia ter tido nos gémeos ou melhor, nos pais. O Sérgio foi o primeiro a replicar, com um sorriso contorcido, “talvez te responda depois de deitar os miúdos”.

António: Não sejas assim, os miúdos nem estão a ouvir, estão a furar o peixe com a faca do queijo. 

Marco: Eles não gostam de peixe?

Sérgio: Não, mas só lhes faz bem.

Verónica: Peço desculpa, mas a minha pergunta não era para os miúdos. 

António: Claro que não era. Eu posso responder-te.

O Sérgio levantou-se da mesa sem qualquer crispação, anunciando aos gémeos a recompensa por não ouvirem o sadismo adulto que serviria eventualmente de alimento para o infantil, rico em proteínas. O António, que tinha deixado a resposta em suspenso ao ver o Sérgio levantar-se, respondeu à Verónica com uma objecção digna da sua profissão de médico. Alegou que o enunciado não tinha sido formulado correctamente e que se alguém fosse escolher a cabeça, logo não poderia ver a respectiva parte a ser comida, rematando com o facto de o peixe se encontrar morto e que, até à data, ninguém teria confirmado a existência de almas incorporadas no restante reino animal. Por forma a ajudar a conversa a sair da sua cilada ontológica, reformulei a questão, deixando de parte a dimensão metafísica e lançando para a mesa: “Se tivessem de escolher uma enfermidade. Se a amputação fosse obrigatória por decreto, qual a parte do vosso corpo que escolheriam sacrificar? Sabendo que o sacrifício é simétrico, se optam por uma mão, têm de optar pelas duas e assim sucessivamente.” Enquanto profiro placidamente a minha resposta – “as pernas ou a tetraplegia” – vejo os olhos do Sérgio, acabado de regressar do interior da casa, a focarem-se triste e gradualmente nos filhos sentados frente à televisão a comer a sua malga de chocapic. O Sérgio era sem dúvida o ser mais mudo e sensível de todos nós.

Para validar a minha pergunta, dando-lhe um ar mais leve, a Verónica defendeu a reformulação da questão sorrindo enquanto se justificava, enquanto procurava conquistar o auditório com o seu vestido semi-transparente. A Brenda seguiu-lhe o entusiasmo e apressou-se a tornar a minha pergunta ainda mais refinada: “Eu acho o seguinte, a pergunta devia ser qual seria a parte do nosso corpo que nunca abdicaríamos?” Embora a frase não seguisse a gramática certa, percebemos o lugar onde a Brenda nos estava a levar, um lugar sem sangue.

Mais tranquilizado pela nova reformulação, o Sérgio aliviou os músculos faciais e projectou-se com entusiasmo para participar, pulando da cadeira e repetindo duas ou três vezes “as mãos, acho as mãos super importantes”, a que acrescenta para uma fundamentação imediata, “são responsáveis pelo nosso primeiro contacto directo com o mundo”. Sem reacção à argumentação edulcorada, a conversa prosseguiu com o Marco, capaz de ser o segundo melhor especialista no que diz respeito ao conhecimento dos corpos, pela prática regular de os decepar, abrir e coser na sua banca de chefe. Quase diariamente, costumava descrever, ao chegar a casa, as suas autópsias mais difíceis e espectaculares à Brenda que, com a sua cultura marcada pela tradicional diplomacia imperial, ouvia longamente a descrição do encontro entre o veio da faca e as veias dos cadáveres, acenando afirmativamente com a cabeça, enquanto passava os olhos por uma revista da sua própria especialidade, relações internacionais. 

Marco: Por essa lógica, escolho os pés. Eles sim, contactam todos os dias e de forma directa com o mundo, pisando-o, que é, ainda por cima, o que o mundo merece.

António: Estás a atribuir um aspecto moral à coisa.

Brenda: Sim, é verdade. Mas entendo o que o Marquinhos está a dizer. Meu amor, estás a dizer que a pergunta é muito vasta, não é? Que é difícil escolher?

A Brenda costumava traduzir as intervenções do Marco em sociedade, pouco hábil para usar o protocolo certo para partilhar as suas emoções. “Sim, sim, é isso”, disse o Marco, a que a Brenda responde que a melhor solução seria agregar o corpo em partes essenciais, para a escolha ser mais reduzida e menos etérea. Resolvido em acabar com as indecisões próprias de quem tem medo de escolher, apressou-se a sistematizar o novo enunciado: “se tivéssemos de escolher uma parte do nosso corpo, por ser essencial, qual seria, tendo em conta… a cabeça, o tronco e os membros.” Finalmente, a nova formulação reuniu consenso.

A Brenda juntou-se logo à invectiva do namorado “membros!”, argumentando que sem membros não poderíamos interagir com o que nos rodeia. A justificação racional da escolha juntou ainda à causa dos membros o Sérgio e o António. A expectativa recaía agora sobre mim e a Verónica, que tinha ido buscar copos e vodka, recordando aos pais que a hora de deitar aconselhável para menores de 12 anos tinha sido amplamente desrespeitada. O António regressou dos quartos quando a Verónica serviu o último copo. Antes de continuar, ela bebeu duas doses, veneno insuficiente para tornar instável um corpo nortenho de 1m80, mas suficiente para dar entusiasmo à sua próxima falar. 

Verónica: É verdade que os membros são importantes. Eles contactam com as energias primordiais. Se me fosse possível escolher uma parte do corpo que não entrou no baralho, seria a nossa aura. Mas como não a vemos a olho nu e para não  complicar a conversa, escolho o tronco, que é capaz de sentir o perigo e o prazer e guiar o corpo. Não, é verdade, o tronco abriga ainda o nosso órgão mais vital, o coração. Quando sentem coisas, não as sentem no peito?

António: Isso é verdade, o teu corpo pode sobreviver a uma morte cerebral, mas quando o coração pára, pára. 

Verónica: Exactamente. As sensações boas e más, agitam em primeiro lugar a zona do peito. Os antigos costumavam dizer que a alma estava justamente alojada aqui no tronco. E, tu, Virgílio?

Durante toda a minha vida, o meu nome tinha-se transformado num peso enorme e esse sim num verdadeiro guia. Chegava a pedir aos meus amigos que me chamassem com um assobio, ou um grito, como o pastor chama as suas ovelhas, só para não ouvir ‘Virgílio’. E ela sabia-o. Retorqui de forma curta e aborrecida, “não sei, é-me indiferente”.

Verónica: Não sei o que se passa, mas não estás de boa-fé.

Eu: O peixe continua aqui inteiro, ninguém quer comer?

Verónica: Comemo-lo depois de termos as respostas de todos!

Marco: Se não se importarem, estou cheio de fome.

Verónica: Vá lá, Marco. Aguenta mais um pouco.

Pego na faca, corto a cabeça ao peixe e digo, “estou servido”. 

Verónica: Vais escolher a cabeça porque ainda ninguém o fez?

Eu: Não, é só a minha resposta.

Depois de me pedirem para desenvolver o pensamento acerca da cabeça, que a mim me parecia desprovido de justificação, pela lapalissada que é ter de defender a sua própria cabeça, propus uma argumentação fluída e transparente, não fosse eu um homem de diálogo. A Verónica acusou-me de racionalismo tolo. Senti depressa que seria o único à volta daquela mesa a dar-se em penitência pelas centenas de cientistas queimados durante a Idade Média. Respirei, apaguei as rugas de ódio do rosto, olhei para ela com a maior das calmas e levei a questão a uma última reformulação. 

Eu: Acabei de sentir que a única forma de me poder justificar verdadeiramente é alterando a pergunta: de que parte do corpo mais precisas para amar?

Marco: Da piça!

Eu: Não, para amar de outra forma.

Brenda: Sim, de forma romântica, parvalhão!

Marco: Se não se pode dizer piça num jantar…

Verónica: Adiante…

Até teria rido ao ouvir a palavra ‘piça’ em qualquer contexto, mas aquele não era propriamente o momento. O ar quente pesava tanto quanto as nossas inquietações individuais ou a maneira como cada um olhava para o seu parceiro. Mesmo as pequenas conversas paralelas eram tidas no maior dos silêncios, muita vezes para comentarem a acção e se posicionarem enquanto casal. Mas escolher introduzir o ‘amor’ teve em conta o facto de que a maior parte da população mundial despoleta uma súbita empatia (positiva ou negativa) por valores e sentimentos contraditórios pelo polémico conceito. Dizer amor para uma pessoa é como dizer mel para as abelhas, ficam tontas e participativas. E, na verdade, queria passar na avaliação a que me tinha submetido e foder ainda antes das velas do quarto derreterem todas. “Mas podes amar com as mãos”, adiantou a Verónica, a que o Sérgio, de repente homem sem filhos, retorquiu: “eu chamo a isso masturbação”. “Mas podes amar com o peito todo”, disse-me ela, de seguida, com um olhar cheio de coisas e cheio de nada. A conversa desenvolveu-se ao ponto de não conseguir encaixar uma simples frase para defender a minha posição, quando finalmente a Brenda me concedeu a palavra.

Eu: Mas, meus amigos, a cabeça é aquilo que me faz amar esta mulher. Verónica, é o que me faz ouvir-te, ver-te e até tocar-te se encostar as minhas bochechas contra a parte do teu corpo que escolheres para vivermos juntos. É aqui dentro que te imagino, num todo extraordinário, gosto de ti inteira ou quase inteira como este peixe. E sim, podias também escolher a cabeça e ainda assim nos conseguiríamos beijar e penetrar com a boca os orifícios que nos restassem. E poderia continuar a olhar para ti, Verónica, olhos nos olhos, e poder partilhar as poucas palavras que ficarão porque, tens razão numa coisa, é o corpo inteiro que favorece o nosso mais íntimo vocabulário. Para remediar as malformações, concentrar-nos-íamos em construir orgasmos múltiplos com a simples força da nossa imaginação. Não haveria moral, porque não teríamos um corpo que nos envergonhasse ou que procurássemos, num desperdício de tempo, aperfeiçoar. Dedicar-nos-íamos a pensar em nós e um no outro, enquanto olhássemos lá para fora e  estranhássemos a deformação íntegra dos outros. E por qualquer acaso se fôssemos condenados à morte, por um crime que não teríamos cometido, ninguém nos poderia impedir que as nossas cabeças se beijassem no fundo do cesto.

Verónica: Estás a dizer isso para…?

Eu: Não, Verónica, não.

A pergunta, atirada com satisfação, tinha fechado o meu pequeno discurso improvisado sobre a cabeça. O amor tinha dado finalmente início ao jantar que nos apressámos a abandonar, deixando os nossos amigos a pensar sobre os seus membros nas combinações certas.