CLÁUDIA LUCAS CHÉU
Nasceu em Lisboa em 1978. Poeta, dramaturga e argumentista. É co-fundadora da Edições Guilhotina e da Teatro Nacional21. Frequentou o curso de Línguas e Literaturas Modernas e concluiu o curso de Formação de Actores da Escola Superior de Teatro e Cinema.
Tem publicados os textos para cena Poltrona – monólogo para uma mulher; Glória ou como Penélope Morreu de Tédio; Europa, Ich Liebe Dich; Violência – fetiche do homem bom; Círculo Onanista; Bank, Bank, You’re Dead, pelas edições Bicho-do-Mato/Teatro Nacional D. Maria II; A Cabeça Muda, pela Cama de Gato Edições; Curtas da Nova Dramaturgia – Memória, Edições Guilhotina, 2015. Publicou ainda a micro peça Circle Jerk na Revista de Artes Escénicas Galega Núa.
Publicou em prosa poética o livro Nojo, pela (não) edições; o livro Trespasse (poesia), Edições Guilhotina, 2014; e Pornographia (poesia), Editora Labirinto, 2016. Em Julho de 2017 será lançado o seu último livro, Ratazanas™ (poesia), Selo Demónio Negro, São Paulo. Gosta de pensadores contemporâneos, Bach e hambúrgueres.
Bom dia, Cláudia. Na tua primeira participação na Flanzine, chegas com uma mala armadilhada, onde cabem Deus e Walter Benjamin. O que mais carregas nessa mala que continuas a transportar?
Tinha espaço na mala para Deus e Walter Benjamin mas, à última da hora, decidi não pô-los na bagagem. Afinal de contas, não me podia esquecer do objectivo da mala: a armadilha. Não quis transformar a bomba num sarcófago de Noé. Por isso, forcei a entrar na caixa: o Valério Romão, a Beatriz Preciado e a Peaches – o escritor, a filósofa e a artista. Levava, na boa, estes três às costas – a caminho do admirável mundo novo (sorry, Huxley).
Valério Romão, de quem já editaste a obra dramatúrgica A Mala, nesse teu projecto chamado Guilhotina. O que te leva a mais um papel na tua vida, desta feita de editor(a)?
Sou, sobretudo, uma leitora – com 10% de inveja da boa. Limito-me a editar aquilo que gosto de ler (ou que gostaria de ter escrito); tento partilhá-lo como outros leitores. Ainda por cima, sou uma privilegiada por ter comigo na Edições Guilhotina grandes profissionais e amigos: a Maria Quintans (editora e poeta), o Albano Jerónimo (produtor) e o João Mota (designer nosso e da Phaidon, em Londres – que sorte e orgulho).
Falas de inveja, ainda que “da boa” – é comum atribuir-se esse sentimento ao imaginário colectivo português, como sendo uma das suas principais marcas. Concordas com isso?
O José Gil fala acerca dessa condição no livro Portugal, Hoje – O Medo de Existir. Segundo Gil a inveja é querer para si o que o outro tem e, mais do que isso, não querer que o outro o tenha. Não subscrevo este modus operandi, nem o acho exclusivamente português; nunca o vivi e sou portuguesa. Em relação à inveja prefiro a versão do dramaturgo hispano-argentino Rodrigo Garcia: “o mundo todo é invejoso/e todos têm bom coração”.
A portugalidade, essa coisa do ser (e estar) português, é algo que te interessa enquanto autora?
Nada. Absolutamente nada. Já me interessou, o meu primeiro texto para cena que foi publicado (Glória ou Como Penélope Morreu de Tédio, Bicho-do-Mato, Lisboa, 2011) falava acerca de uma certa condição de se ser português. Precisamente sobre a questão do medo e da inveja. Entretanto, mudei de profissão, viajei mais, fui mãe, li outros autores e mudei de interesses e de opinião.
A maternidade altera a escrita? Ou, de uma forma mais genérica, a forma como vês o mundo?
Escrevi três textos, que depois se transformaram em livros (Nojo, (não) edições 2014; A Cabeça Muda, Cama de Gato, 2014; Trespasse, Guilhotina, 2014) no primeiro ano de maternidade. Estava a amamentar e praticamente não dormia – a minha filha acordava de duas em duas horas. No entanto, até à data, foi o período de trabalho mais fértil. Aproveitava todos os minutos livres para escrever e não filtrava nada. Percebi que era urgente escrever. Com o nascimento da minha filha, tive noção da minha finitude. Só depois de ter sido mãe é que percebi, com um alcance realista, que iria morrer. Tinha ali uma criança, um ser novo amado em absoluto, que dependia de mim; e, de repente, tornou-se importante fazer coisas e deixar-lhe algo.
E o teatro? Tem estado adormecido?
Digamos que esteve em coma induzido e despertou. Estive nos últimos quatro anos dedicada exclusivamente à escrita (poesia, argumentos, textos para cena, guiões, colaborações com revistas). Voltei recentemente a dirigir (os alunos do 3.o ano da escola de actores In Impetus); e ao Teatro Nacional, com o espectáculo Um Libreto Para Ficarem Em Casa Seus Anormais. A primeira encenação do Albano Jerónimo com quem tenho a Teatro Nacional21. Era impossível recusar este desafio. Faço parte de um grupo de vinte e tal artistas em cena: absolutamente admirável esta junção de pessoas. Há oito anos que não ia para cena. Aceitei porque encontro-me numa posição privilegiada: faço de ponto, estou sentada na plateia e sigo as palavras de todo o texto. No fundo, represento uma personagem intermédia – expressão que aprendi com o João Brites do Teatro O Bando – alguém que continua vinculado ao teatro, pelo texto e pelas pessoas.
No meio dessa multipersona contemporânea, tu és também actriz. Preferes estar do outro lado das luzes?
Trabalhei profissionalmente como actriz durante 10 anos. Simplesmente deixei de estar disponível para esse trabalho. Desinteressou-me. Tenho o maior respeito e admiração pelos actores – são artistas peculiares, sujeitos ao desejo do outro. Sei, tecnicamente, o que é o trabalho do actor, saberia voltar a fazê-lo, mas não quero, não me sinto actriz.
É curiosa essa perspectiva do desejo. Um elemento que faz parte do jogo mas que se encontra a maior parte das vezes invisível para o espectador.
Na encenação da tua escrita também o utilizas?
Não percebi a pergunta.
O desejo – na construção da tua escrita. Jogar com o leitor esse jogo.
Acredito que a libido funciona como motor da criação. Não é um elemento consciente, mas está lá e, provavelmente, é a essência. Acho que tenho uma escrita lúdica, sim. Assumo o jogo, gosto de construí-lo, dá-me prazer. Julgo que tem, pelo menos, dois níveis: o jogo que se estabelece no próprio raciocínio (para mim própria e que me surpreende, algumas vezes) e o que nasce do conflito/encontro entre o que escrevi e o universo do leitor. É nesse espaço entre o texto e o leitor que o livro existe – e é infinito, múltiplo.
E nesse jogo colocas-te frequentemente dos dois lados, pois já te assumiste enquanto leitora. Mas é comum ler-se ou ouvir-se dizer que existe uma nova geração de escritores que não lê, que não conhece os clássicos, e por aí fora. Concordas com isso?
Fiz recentemente um seminário com o António Guerreiro e essa questão foi abordada. Segundo o António, e eu subscrevo, há é uma geração de escritores que lêem somente os pares, outros autores contemporâneos. Ou seja, reconhece-se na escrita dos autores as influências dos pares. Para dar um exemplo, nos textos iniciais do Valério Romão sentia-se a presença da escrita do António Lobo Antunes (o próprio Valério já falou publicamente sobre isto); na escrita do João Tordo também sentimos as leituras dos americanos: do Auster ou do Roth. Não me parece é que seja um fenómeno de agora, os escritores sempre foram influenciados pelos pares. Talvez a diferença é que se notava a contaminação dos pares, mas via-se a leitura dos clássicos. Pensemos em Fernando Pessoa, por exemplo, contaminado pelo espírito da geração de Orpheu; vemos lá Botto, Sá Carneiro, mas também os clássicos como Camões. Na minha escrita para cena já me compararam à Angelica Liddell, à Sarah Kane, ao Rodrigo Garcia. Li-os, confere. Mas também li, e leio, Shakespeare, Molière, Aristófanes, Sófocles, etc. Se a leitura dos clássicos é invisível nos meus textos não sei, nem penso nisso.
Há na tua escrita um diálogo entre essas leituras e a cultura pop do presente?
Sim. Sobretudo na escrita para cena. Escrevi alguns textos a partir dos clássicos gregos. A Cassandra Bitter Tongue, por exemplo, a partir do mito de Cassandra. Transformei a voz premonitória e visionária do original, numa tese de mestrado acerca do cinismo – defendida oralmente (citando algumas vezes Sloterdijk). Tenho outros textos na mesma lógica, por exemplo, o Glória (baseado no percurso omisso de Penélope em Odisseia de Homero). Os clássicos têm lá tudo. Só preciso de estar atenta ao presente e aproveitar o que bem entender como matéria de trabalho; misturar formas e conteúdos. Não me importo de ser um moulinex™ textual. Recentemente ando a fazer experiências deste tipo nos textos poéticos, na forma. Gosto de testar. Detesto fixar uma forma ou, como se ouve bastante e acho ainda pior, encontrar uma voz. Não quero ter uma voz, sou ambiciosa e assumo a procura
por uma esquizofrenia de estilo. Quero ser muitas cenas. E como diz o Gonçalo M. Tavares “procurar constantemente a mão esquerda da escrita”.
Nesse sentido, como encaras a tua escrita para televisão? Tem alimentado essa esquizofrenia?
A escrita para televisão, sobretudo o guião para telenovela, contribui para fazer músculo e criar velocidade. É um trabalho exigente: velocidade e quantidade. Valorizo muito os meus colegas argumentistas que têm trabalhado anos seguidos a escrever para televisão. Considero-os maratonistas. Tenho imenso respeito pelo Mário Cunha, o Pedro Lopes, o Alexandre Castro, entre outros. Aprendi muito com eles na SP Televisão. Felizmente tenho tido a oportunidade de ter outras fontes de rendimento (nomeadamente a escrita para revistas, como a Vogue e a Delas.pt) e fazer pausas na escrita televisiva. Não sei se teria a capacidade de resistência anímica para escrever sempre e só para televisão.
O que gostavas de fazer que ainda não tenhas feito?
Andar numa nave. Ir ao espaço e ver o terceiro planeta mais próximo do Sol. Estou a falar a sério. (Enquanto não for possível, hei-de ir ao Japão). Uma cena mais doméstica: gostava de fazer um salto de pára-quedas, tenho vertigens e acho que podia ser uma terapia de choque.
Pode ser que o pudim se torne voador e um dia juntemos a malta toda numa excursão dessas. Até lá, vamos contando com as tuas preciosas participações na revista. Há algum tema que gostasses de sugerir para um futuro número?
Dois temas: Pornografia; Família.
A Pornografia não está banalizada? E não sendo uma temática nova no teu trabalho, o que continua a provocar o teu interesse?
A pornografia é o epítome da banalização, mas, ainda assim, nunca será uma temática banalizada, acho. Não acredito que deixe de vender, aliás é uma cena absolutamente codificada, mas com imensas nuances. Cada vez há mais categorias, reinventa-se à velocidade da era em que vivemos. É cada vez mais específica. A área dos fetiches está cada vez mais diversificada e bizarra. Há espaço para tudo e ainda bem. Não há nada de natural na sexualidade humana. Atrai-me na pornografia (e segundo a própria definição no dicionário) aquilo que ataca o pudor, a moral e os bons costumes. A obscenidade.
Hilda Hilst faz parte do teu imaginário?
Conheço o trabalho da Hilda, li alguma poesia e recentemente o Pornô Chic. É interessante, sobretudo por ser uma autora com um percurso incrível (contista, dramaturga, poeta), feminista à séria, num meio literário ainda algo misógino, ou ainda pior, machista passivo-agressivo. Contudo, acho a minha escrita muito distante da dela. Não relaciono.
E o Houellebecq?
Descobri o Houellebecq sem querer. Nunca tinha lido nada acerca do seu trabalho. Numa livraria folheei, por acaso, A Extensão do Domínio da Luta e pensei: isto parece mesmo fixe. Então, levei o livro e li-o logo, de seguida. Gostei mesmo do estilo, da forma e conteúdo. Um desencanto encantador, apaixonei-me logo. Apaixono-me pela cabeça de determinado autor; quando isto acontece, leio tudo o que foi publicado. Só me aconteceu com o Gonçalo M. Tavares, o Henry Miller, o Valério Romão e o Houellebecq (reparo agora que são todos homens, não sei se gosto disto, bah). Ah, espera, em dramaturgia também li tudo da Angelica Liddell e da Kane. Mas voltando ao Houellebecq, fiquei desiludida com o último livro Submissão, acho que está a facilitar. Vi preguiça na escrita. Não gosto disso. Portanto, espero o próximo para fazer as pazes com ele.
Entendo a tua desilusão embora acredite ser algo propositado, uma escrita correspondente à falta de exigência do mundo em geral. Um mundo que foi capaz de eleger Donald Trump como presidente dos EUA. Como convives com este absurdo?
Primeiro com perplexidade. Achei que seria improvável (graças à imagem errónea que nos chegou através da imprensa internacional). Depois com conformismo, tão típico ao ser humano. Estamos habituados a lidar com o absurdo. A História está repleta de absurdos, a própria condição humana não faz sentido nenhum. Termos um Trump pode ser tão absurdo como acordar todos os dias, ter de vestir roupa e ir trabalhar.
Achas que o trabalho humano tende a desaparecer, com os progressos da robótica e da inteligência artificial?
Acho que serão outros trabalhos. Novos e ainda inimagináveis. Mas ainda estamos longe. Vi o último documentário do Herzog onde se falava nisso. Um cientista dizia que a inteligência artificial ainda é pouco evoluída, só quando chegarem à autonomia de uma barata ficarão satisfeitos. Se isto é assustador? É. Se é interessante? É, muito. Fascina-me o novo, o desconhecido. Acho que será sempre melhor.
Daí teres aceite o meu convite para esta aventura da Flanzine?
Sim. Embora não seja pôr-me a jeito para levar um tiro no escuro. Conhecendo o projecto anterior Flanzine (que acompanhei desde o início) em formato de revista e conhecendo-te a ti, Azul, confio plenamente, e sem ver, no que aí virá. Surpreende- me à vontade, sei que dentro da surpresa será uma cena fixe.
Ahh a pergunta estava presa ao passado e tu estás sempre mais à frente: a aventura era a da revista, em que tu aceitaste participar sem hesitar e sem saber no que ia dar.
Ahahahahah. Ok, mas a resposta é praticamente a mesma. Aceito sempre convites inusitados, só desconfio das formalidades e do óbvio.
Óbvio é o meu agradecimento a ti, à tua disponibilidade e confiança. Não desconfies dele. Mas, antes de terminarmos esta conversa, gostava de saber como escreves. Em casa? Com música? Silêncio? Essas perguntas que ficam sempre bem numa revista-suplemento de fim-de-semana.
Maioritariamente em casa, sentada no sofá, com o portátil sobre o colo e em silêncio. Estou a ficar marreca à conta deste hábito. Mas o meu cérebro trabalha bem nesta posição. A música interfere bastante no meu mood, por isso prefiro o silêncio. Contudo, também escrevo muito na aplicação de notas do iPhone, e isso acontece um pouco por toda a parte. Como agora, por exemplo, estou a responder parada num semáforo. Um dos textos para cena de que mais gosto (Veneno, Edições Guilhotina, 2015), foi escrito precisamente no bloco de notas do telefone. Encontrava-me de pé junto à bancada da cozinha, por não ter onde me sentar. Estava a mudar de casa e enquanto esperava que me trouxessem os móveis escrevi o grosso do texto, ali, encostada à bancada com o telemóvel na mão. Acho que os smartphones são uma invenção genial dos nossos tempos, sobretudo para quem escreve. São super eficazes. Escreves no momento e envias para ti próprio por e- mail. Fica salvo. Depois tens tempo de o retrabalhar no computador, se quiseres, mas o mais importante é teres uma ferramenta que te permite anotar e salvar uma qualquer urgência de escriba. Gosto desta ideia de salvar uma ideia por meio tecnológico. Não a deixar fugir, morrer.
Resta-me agradecer-te a oportunidade desta bela conversa, desejar-te uma óptima estreia e deixar-te um até já.
Obrigada também. Foi a entrevista a que mais gostei de responder. Muito fixe fazê-lo desta forma.
Julho 2017
Revisão: Gonçalo Mira
*Alípio Padilha — Depois das rádio piratas e do jornalismo e da formação no CENJOR, Associação Portuguesa de Arte Fotográfica, MEF, e IPF, a fotografia tornou-se a sua atividade principal. O primeiro trabalho editado foi o disco ao vivo de Sérgio Godinho “Nove e Meia no Maria Matos”. Entretanto seguiram-se outros, na área da música: Dirty Coal Train, Sensible Soccers, Mão Morta, e foi fotógrafo residente no Music Box, Ritz Club. Mais recentemente fotografou os GNR por altura dos seus 35 anos de carreira.
No que diz respeito às artes perfomativas, já fotografou, entre outros, trabalhos d’A Garagem, Companhia Teatral do Chiado, A Barraca, Teatro Praga, João Botelho, Karnart e Luís Castro, Teatro do Mar, Silly Season, Elmano Sancho, RuadasGaivotas6, Teatro do Eléctrico, Os Possessos, Rui Catalão, Companhia Olga Roriz, Companhia Nacional de Bailado (também com Anne Teresa de Keersmaeker), Companhia Clara Andermatt e Sónia Baptista. Durante cerca de três anos foi o fotógrafo residente do Teatro Nacional Dona Maria II.
Fotografou, também, eventos como o Festival Indie Lisboa, Festival FIMFA, Festival FUSO, Festival TEMPS D’IMAGES, “Lisboa Idade”, “Panorama – Mostra do Documentário Português” e Festival do Silêncio.
O seu trabalho encontra-se editado pelo Teatro Nacional D. Maria II, CTT, Uzina Books, Imprensa Nacional Casa da Moeda, Tarumba, CTL Lisboa, Universal Music e Sony Music.
Participou em várias exposições colectivas e individuais (Bienal de Fotografia de Vila Franca de Xira e o ONEurope – Bienal Artes Plásticas do Montijo), integrou o colectivo The Portfolio Project e apresentou-se individualmente na Galeria da Direcção Geral da Administração da Justiça e na Galeria Round The Corner.