Rogério Nuno Costa

Fotografia: Luísa Cativo*

Rogério Nuno Costa é artista, investigador, professor, curador e escritor em vários projectos coolturais e pós-artísticos, formalmente americanos, conceptualmente europeus, religiosamente Kopimistas, filosoficamente Piratas e literariamente re-re-realistas (ou realistas gagos). Com formação académica na área da Comunicação, considera-se um observador (participante) com uma curiosidade mórbida pela arte que se parece mesmo com Arte, só devolvendo o resultado das suas investigações porque é o que manda o Código Deontológico dos Jornalistas. Não é actor; considera que todos os trabalhos de teatro/performance que realizou em colaboração com diversos artistas e companhias foram trabalhos de consultoria. É encenador de um só espectáculo, que ensaia desde 1978. Não vai estrear. Nunca. Trabalha atualmente na construção (from scratch) de uma “Universidade”.

 

Bom dia, Rogério. No arranque da Flanzine, com a MALA, em 2013, apresentas um Projecto Lei – Terceira Via ™ -, e na sétima alínea dizes: ” Na Terceira Via ™ nunca estamos lá dentro. Estamos sempre cá fora, a sorrir e a acenar”. A que acenamos nós? 

Acenamos à narrativa instituída, e fazemo-lo sem o auxílio de óculos 3D. Não somos “opticamente correctos” (parafraseando o André e. Teodósio). Não queremos ser, pelo menos. Acenamos à narrativa que nos oprime, portanto. Utilizo a terceira pessoa do plural, tentando recolocar-me na mesma realidade espácio-temporal em que me encontrava em 2013, quando te enviei o manifesto da Terceira Via™. Achava, na altura, que o eu era muitos. Enganei-me. Em 2017, estou tão sozinho como estava em 2013. Continuo a acenar, mas de longe. A distância não me corrige a miopia, por isso é um aceno cego. Em 2013, em 2014, em 2015, acenei de fora, mas muito próximo do dentro. É o lugar mais perigoso para se acenar! É o lugar privilegiado para o exercício do silenciamento, da opressão e da higienização feitos por quem, orgulhosamente, se deixa ficar lá dentro, mesmo quando acredita que está fora. Acenar de fora, estando perto do dentro, é o posicionamento basilar da Terceira Via. Contrariamente ao que possa parecer numa abordagem muito superficial ao texto, não se trata de dar uma no cravo e outra na ferradura, de agradar a Gregos e a Troianos… A Terceira Via não é, garantidamente, um adágio metafórico! Trata-se, sim, de reclamar um posicionamento terceiro, que nem quer ser do contra nem estar a favor. De igual modo, também não quer corrigir esteticamente a sua “ética”, sendo acolhido pela narrativa que o oprime. A Terceira Via é horizontal e infinita. E investe num regime ontológico, nunca antológico, que acaba por promover a sua inevitável auto-destruição. A Física Quântica já provou (teoricamente) a existência de universos paralelos, mas ainda não nos disse como é que os podemos criar, mesmo que apenas laboratorialmente. Até lá, todo e qualquer “aceno”, mais ou menos próximo da linha do gatekeeping, será sempre a assinatura pre-mortem da nossa própria certidão de óbito.

Podemos dizer que a tua escrita é sempre performativa?

Creio que só sei pensar “performativamente”. A forma como penso revela-se na forma como escrevo. Aliás, ambas confundem-se. Não separo a escrita das restantes coisas que faço. Por isso a escrita é apenas mais uma das emanações “materiais” da minha performatividade. E por isso é sempre subsidiária de uma força e de uma motivação conceptuais. Não sou escritor. Não quero que me leiam através dos filtros literário, lírico, nem sequer ensaístico. A escrita também é performance, mesmo quando se trata de um post estritamente opinativo, mais ou menos retórico, mais ou menos irónico, publicado no Facebook.

O Facebook é o palco que faltava para podermos todos fazer parte do “show”?

O Facebook sempre existiu! O palco é o mesmo de sempre. Já existia nas grutas “pré-históricas” do Neolítico Superior. Por detrás daqueles episódios de caça marcados na pedra a pigmento está a mesma motivação (podes substituir por meme) de sempre: show me the picture, or it never happened. Assim mesmo, em Inglês Continental. Não há qualquer diferença estritamente epistemológica entre a parede de Lascaux e a wall do Facebook. Só mudou o design (o que também é discutível). O “show”, esse, somos nós, mais a nossa tenebrosa incapacidade de lidarmos com o facto de que, um dia, vamos desaparecer.

O que é mais difícil: desaparecermos de facto ou desaparecer a consciência do que somos?

Nenhum dos desaparecimentos é propriamente difícil. Acontecem naturalmente, mesmo quando provocados “artificialmente”; são condições estruturantes da nossa existência. O segundo desaparecimento é talvez mais frequente que o primeiro, até porque é, aparentemente, controlável. Vamos desaparecendo e aparecendo consoante a força das marés que nos vão empurrando, às vezes afogando. Gastamos demasiado tempo a lutar contra as forças que nos oprimem, em vez de criarmos forças alternativas. Gastamos demasiado tempo a dizer que somos o que somos, em vez de sermos, de facto, aquilo que dizemos ser. Às vezes desaparecemos porque queremos mesmo obliterar a nossa existência, que é ela também uma força opressora. Desaparecemos quando ainda nem sequer morremos. O difícil é mesmo desaparecer sem ter que anunciar no Facebook que vamos desaparecer. A minha tendência Bartlebyana é uma espada de dois gumes: às vezes é só uma enunciação conceptual de uma vontade meramente retórica, às vezes é mesmo uma factualidade. Tenebrosa e radical. Paga-se um preço muito alto quando se faz coincidir arte e vida (não necessariamente nesta ordem).

O preço de te levar a viver na Finlândia?

Estar a viver na Finlândia não consubstancia uma ideia de fuga. É antes a radicalização de tudo aquilo que afirmo/anuncio em performance, é uma passage à l’acte, estética porque política. Só me interessa afirmar aquilo que posso inscrever no plano “do real”, mesmo que isso implique uma evasão peripatética. Em 2006, quando apresento, em Lisboa, a performance “Lado C” (3.ª parte da trilogia Vou A Tua Casa), termino a leitura de um texto auto-, bio-, e gráfico- (mas nunca “autobiográfico”) com o desejo de abandonar a cidade onde vivi e onde me fiz artista durante mais de 10 anos, para regressar a essa Amares romantizada e impoluta, donde nunca deveria ter saído. “Campo por campo, prefiro o original”, dizia. Cumpri a promessa em 2011. Em 2013, com a “Terceira Via“, faço uma ode a um país improvável, ficcionando uma finn’isterra onde o Fim ascende à categoria de nação: Fim-Lândia. Cumpri a promessa em 2016. Tenho esta obsessão quase situacionista de comprovar que é mesmo possível construir asilos estéticos em probabilidades meramente teóricas. Sou, basicamente, um político que cumpre. Todos sabemos, porém, que ninguém vota em políticos que cumprem.

Eu votava em ti. E tu, costumas votar?

Eu voto sempre! Gosto imenso de concursos, competições, pontuações e rankings. E adoro prémios e premiações. Atraem-me imenso listas. E tenho um fascínio quase mórbido pela palavra “melhor”. Acredito religiosamente no poder infinito dos números. E até consigo apreciar o lirismo subjacente à aura do super-herói. A medalhização olímpica dos humanos superiores é uma cena muito grega, há-de estar nos nossos genes, não? É uma pena que a arte não seja um desporto…

Agora fizeste-me lembrar “O Nosso Desporto Preferido” do Gonçalo Waddington. Viste algum dos espectáculos da tetralogia?

Não vi. Ganhou algum prémio?

Ahahaha. Não creio mas eu não vi os Globos de Ouro, só o Festival da Canção. Ficaste feliz com o Salvador?

Fiquei feliz com o facto de ter ganho um País underdog. Foi Portugal, mas podia ter sido o Montenegro, ou São Marino, ou a Ex-República Jugoslava da Macedónia, que eu ficaria igualmente contente. É esta uma das razões (entre inúmeras) que me faz gostar tanto da Eurovisão. A possibilidade de, às vezes, só às vezes (mas agora mais vezes do que nunca), os rafeirolas “que nunca ganham nada” espetarem uma chapadona no focinho e premiarem os cães anafados e cheios do pedigree com uma mijadela na perna. Se os prémios e distinções servirem para abalar um pouco a estrutura dos monopólios (sendo que os estéticos são os mais perniciosos), então já não são assim tão inúteis. Estava a torcer pelo Salvador, evidentemente, mas não por razões patrióticas. Em 2007, quando o concurso se realizou cá, em Helsínquia, estava a torcer desesperadamente por Andorra, que enviou uma banda de teenagers a cantar sobre salvar o Mundo. Andorra a dizer à Europa que quer salvar o Mundo. Não é lindo?

Muito! Mas o mundo ainda tem salvação?

Claro que não. Por muito que gostemos de afagar a nossa esperança humanitária com micro-salvações profilácticas (o cão da vizinha a morrer afogado na piscina, o País à beira do colapso económico, a região geográfica em perigo de catástrofe ecológica), o Cosmos está constantemente a fazer-nos aquela cara de “Bitches, please…”. Caminhamos, a passos cada vez mais largos, para o desaparecimento. Só nos resta fazer o que a Britney nos pediu em 2012: dancing ’til the world ends…

Mesmo que a canção seja em playback?

Sobretudo se a canção for em playback! Não entendo a paranóia em torno da importância de se “cantar ao vivo”. Fazer playback é apenas mais uma forma de cantar. Tal como estar nu é apenas mais uma forma de estar vestido. O playback é uma arte de respeito. E a Britney tem a proeza de a praticar com grande mestria: não esconde de ninguém que é playback aquilo que está a fazer.

“Leave Britney Alone” marca a história da Internet, esse lugar onde andamos quase todos nus. O que mais achas que devemos deixar em paz?

Os inimigos. Acho que devemos deixar os inimigos em paz. O grande desafio de se ser adulto não consiste em aceitar a terrível evidência de que temos inimigos. O grande desafio, o mais hercúleo, consiste em aprender a ignorá-los. Recordo as palavras sábias que um grande amigo meu, em jeito de conselho, me disse há uns anos, citando uma carta de Sophia a Jorge de Sena: “Só acho é que o Jorge não devia perder tanto tempo a dizer aos parvos que são parvos.” Demora-se muito tempo a aprender isto. Uma vida inteira.

Mas nem todos os parvos são inimigos, certo?

Não sei o que diria a Sophia se lhe pedisse para definir “parvo”, mas sei que não se referiria à personagem vicentina que “é parva mas diz as verdades que ninguém quer ouvir”. Os parvos inimigos são aqueles putos reguilas que lideraram gangues de bullying nos anos 90 e que transformaram a vida de muita gente num martírio. Há 10 anos gozámos com esses parvos porque reencontrámo-los na rua, ou no Facebook, ou ambos, e constatámos que entretanto casaram, engordaram 30 quilos, fizeram 3 filhos a uma mulher que provavelmente foi vítima do mesmo bullying por eles exercido nos anos 90, acomodaram-se a um estilo de vida apaticamente seguro, e transformaram-se numa caricatura desfigurada deles próprios. Só que agora, por razões muito complexas, os parvos da contemporaneidade ocupam (ou regressaram?) em força aos lugares do poder. São donos de empresas, apresentam telejornais, presidem câmaras municipais (às vezes países), dirigem teatros, são opinion makers, são trendsetters, são gatekeepers com farda e arma em riste. São tão perigosos como eram nos anos 90, com a agravante que ostentam a sua parvoíce com orgulho. Eles sabem que são parvos. Por isso não vale a pena perdermos tempo a afirmar-lhes o óbvio. Ignorá-los é a melhor vingança. Por isso sim, os “parvos” a que me refiro são todos inimigos. Podem é não ser inimigos de toda a gente; tal como os monstros, os parvos também precisam de amigos…

O que é a amizade depois do Facebook?

Não sei bem o que é a amizade depois do Facebook. Mas sei o que é a amizade durante. Precisaríamos de tempo (e de espaço!) para a explicarmos como deve ser. Não querendo entrar no cliché apocalíptico de que as “relações verdadeiras” foram assassinadas pelas redes sociais, cliché que não sustento nem nunca sustentarei, diria que a palavra “amigo” deixou de ser nome para passar a ser verbo. Amigar e desamigar. To friend and to unfriend. Não sei se esta amizade-acção, que se faz e se desfaz com um click, é melhor ou pior, igual ou diferente, do que era antes, se é que existe um “antes”… Parece-me, porém, que as estratégias que fazem da amizade uma construção social (ou “desconstrução”, se quisermos frequentar a ocidental praia de Derrida) são agora mais nítidas, e mais fáceis de avaliar também. O escrutínio online é talvez a obsessão maior do novo século. Acho que sofremos todos de uma espécie de cybernoia: acreditamos piamente que tudo o que lemos/vemos nas redes sociais nos diz respeito. Pior: é sobre nós. Gostava de um dia escrever um texto-acção intitulado “A Política do Gosto” (só funciona em Português, que tem a mesma palavra para “taste” e “like”). Diz-me o que gostas, dir-te-ei não quem és, mas quem queres ser. O Facebook é uma, mais uma, das provas contemporâneas de que ética e estética são uma e a mesma coisa.

Falaste em gosto, quando e como surgiu a culinária nessa tua narrativa pessoal?

Haha! Estava mesmo a contar com essa pergunta… De tal maneira que não tenho uma resposta muito interessante para te dar. Ou talvez tenha a resposta mais interessante para te dar. Começou no dia em que descobri que era capaz de reproduzir, ainda que numa mui humilde aproximação tecno-emocional, o arroz de cabidela da minha mãe. Estava em Lisboa, cheio de saudades do arroz de cabidela da minha mãe, e cozinhei-o depois de ter confirmado a receita com ela ao telefone. Não sei precisar quando foi. 2003, 2004… Depois comecei a cozinhar para os amigos. Foi a Patrícia da Silva, actriz do Teatro Praga, que me chamou Chef Rø pela primeira vez, numa residência em Montemor-o-Novo. Não tive outro remédio senão aceitar. Na altura levava o meu Dogma 2005 muito a sério… O Chef Rø é o meu primeiro e único heterónimo. Tem mesmo uma personalidade “artístico-filosófica” independente, às vezes distante, às vezes contraditória. Não sou capaz de a controlar. É a única personagem teatral que criei, ou que me caiu em cima, fielmente construída segundo os ensinamentos de Stanislavski. Faz-se mover por coisas tão disparatadas como a vontade de elevar a Arte à categoria de Gastronomia, visto que o contrário já foi feito. É o meu alterego renascentista.

As saudades que eu tenho de um arroz de cabidela. Há pouco estive a assar sardinhas e senti o fogo, mas faltou o sangue. Arte perfumática gastromental. Não estás a festejar o São João?

Estou a festejar o Juhannus finlandês, que é a mesma coisa, mas sem a parte do santo. Assam-se salsichas em vez de sardinhas, e vê-se o Sol a desaparecer por escassos minutos na linha do horizonte, para voltar a aparecer logo a seguir, iluminando o Báltico com a promessa de mais um dia quase infinito. Apesar das doses industriais de álcool e o consequente mergulho naturista no mar, trata-se de uma celebração essencialmente introspectiva. Tenho vindo a descobrir o prazer desta contemplação pagã tipicamente nórdica. Ainda não abracei nenhuma árvore, mas já fiz xixi de encontro a uma; para a cultura finlandesa, tratam-se de dois actos de amor e comunhão com a natureza perfeitamente equivalentes… Helsínquia está deserta hoje. Foi tudo para a floresta nadar num lago qualquer à luz do Sol da meia-noite. Eu nunca fui muito dado a festas e grandes aglomerações de gente, mas também nunca imaginei que fosse capaz de apreciar a beleza deste silêncio incomensurável. Há um respeito quase religioso pelo silêncio neste País. Só o entendi quando assisti à primeira neve do Inverno, o ano passado. O manto branco que cobre a cidade durante meses a fio funciona como uma espécie de isolador acústico; é como se alguém baixasse o volume para níveis quase imperceptíveis. A escuridão e as temperaturas negativas completam o cenário. Surdo e gelado. É assim que imagino o fim do mundo. Quem acompanha o meu trabalho sabe o quão importante é para mim a ideia de fim (do mundo e não só). 

Por falar em fim, o que querias ser quando fosses grande?

A primeira coisa que me lembro que queria ser quando fosse grande, e que os meus pais (e uma reveladora fotografia) comprovam, é cantor de música ligeira portuguesa. Aos 3 anos de idade, o meu ídolo era o Carlos Paião. Sabia de cor o “Playback” e fazia o playback do “Playback” em festas familiares a troco de escudos para comprar gelados. Foi a minha primeira performance profissional. O mais extraordinário é que, 35 anos depois, continuo a fazer playbacks de playbacks a troco de escudos. O Rogério de 3 anos de idade deve estar muito orgulhoso.

O Rogério de hoje não?

O Rogério de hoje multiplicou-se em dezenas de Rogérios possíveis. Ou de possibilidades de Rogério, é melhor assim. O Rogério de hoje são tantos Rogérios diferentes que é difícil pronunciar-me de uma forma sintética em relação à tua pergunta, ou pelos menos ao elemento “O Rogério”, que eu não sei mesmo quem é. Este que te escreve, contudo, está muito orgulhoso do playback que está a fazer contigo via e-mail. Só sabe falar do momento presente, vívido, pelo qual se encontra absorvido. Tal como o Carlos Paião, também ele vê/lê o Mundo em meta-duplicado.

Uma espécie de fusão entre o Grande Teatro do Mundo e a Teoria das Cordas?

Ou entre as Cordas do Teatro e a Grande Teoria do Mundo. Mas sim, resumiste(-me) muito bem!

Resumir, será também um gesto teatral?

Qualquer gesto será potencialmente um gesto teatral. Sobretudo aqueles gestos que de teatral têm pouco, ou nada. Desinteressa-me o teatro que advém do Teatro (a maiúscula não tenciona dar à palavra a aura de “disciplina”, mas de “autoridade”). Interessa-me o teatro que não vem do Teatro, assim como me interessa chegar ao teatro sem ser através do Teatro. Uso o verbo “chegar” para evidenciar um movimento de conquista de espaço, não de tempo. Aliás, o movimento não tem que se dirigir necessariamente para a frente, nem sequer a linha é recta. É uma espiral sem ordem. Não há história possível. Andamos a fazer o mesmo espectáculo desde o tempo das cavernas de que te falava há pouco. Todo o teatro que se faz hoje é contemporâneo. E o contemporâneo não é um estilo. O conceptual também não. E não tem gradações. Não existe pouco conceptual ou muito conceptual. A menos que queiramos reduzir o teatro à disciplina/autoridade do Design, e assim transformar os espectáculos (os que fazemos e os que vemos) em peças de vestuário em dégradé. Eu acho isso dégradante. Tenho, por defeito académico, uma inclinação (que começa por ser estruturalista/semiótica) de reduzir tudo a modelos que são denominadores e que são comuns, mas para os destruir depois, por excesso e por exaustão. Sou o comunicador que usa a comunicação para desmontar a comunicação. Como não me deixaram fazer isto no jornalismo, decidi afirmar-me artista. Sim, é uma afirmação/enunciação. Ninguém é artista. E eu sou ainda menos porque ando há anos a fazer o papel de observador participante no meio de uma tribo que me fascina mas que se recusa a ensinar-me a falar a sua língua nativa. Já há quem queira reenviar-me em correio azul de volta ao remetente… Mas eu insisto: a arte é uma ciência. E é social! E precisa de estrangeiros. Precisa de se deixar miscigenar. Precisa de se afirmar enquanto dispositivo queer, para lá de todas as fronteiras e de todos os limites mais ou menos autoritários. Uma contra-corrente, que é sempre contra-, mesmo quando corre a favor. A minha acção (diria melhor, a minha “agência”) será sempre o resumo de uma experiência maior que não cabe em nenhum formato conhecido. Resumir é um gesto teatral na sua condição estritamente linguística. Fora isso, odeio espectáculos que são “resumos europa-américa” de obras literárias, mas creio que não era a esses “resumos” que te referias, pois não?

(N.B.: Ao reler esta resposta para detectar possíveis gralhas, reparo que já disse estas coisas dezenas de vezes em dezenas de contextos diferentes; resumir também implica uma obsessão pela repetição. O Deleuze já apareceu duas vezes aqui e nem precisei de o citar. Resumir a mesma coisa muitas vezes ajuda a muscular a memória, provavelmente a matéria de excelência de todo e qualquer objecto teatral.)

Não, não era. Em jeito de cair do pano, que pergunta ficou por te fazer?

Não ficou nenhuma pergunta por fazer. Mas ficaram várias respostas por dar. A saber:

1. Sou um azeiteiro hipster.

2. Um cobertor. Uma resma de papel + uma caneta com recarga infinita. Um grelhador portátil.

3. A Björk.

4. Da morte.

5. A humildade. Juro que não entendo para que serve a humildade. É a virtude mais overrated e diz praticamente nada sobre as pessoas que supostamente a têm.

6. Comecei ontem a ler, por obrigação académica, o “Dark Matter” do Gregory Sholette. No dia anterior, tinha terminado “A Universidade sem Condição” do Derrida, por obrigação estético-finnlosófica. Queria reler (pela quinta ou sexta vez…) o “Frankenstein” da Mary Shelley, ainda este Verão. É uma espécie de obrigação moral que me auto-imponho sempre que os tempos são de crise. Mas não sei se vou ter tempo. Por norma, preciso de um ano, às vezes mais, para ler um só livro como deve ser. Ler muito não significa ler muitos livros. Gostava de dedicar 10 anos da minha vida ao meu livro preferido. Não te vou dizer qual é.

7. A obra completa do John Cage, por obrigação artístico-profissional.

8. Em 2017, o texto que escrevi para o último número da Flanzine. Chama-se “Fatebook” e é uma alucinação colectiva de todas as pessoas que conheci e de todas as que vou conhecer.

9. Estou a preparar uma nova criação teatral intitulada “1917”. Vai pré-estrear na Finlândia no final deste ano, e em 2018 em Portugal. Estou prestes a fechar, com a publicação de uma concept mega-zine, o Ano Um de um projecto de investigação para a criação de uma Multiversidade™. O projecto está actualmente instalado, em modo protótipo, na Aalto University, depois de ter passado pelos Países Baixos e pela Roménia. Chegará a Portugal, na forma de nãopósio, em 2018. Ah! E o Chef Rø está prestes a publicar um livro. Só que não é de receitas.

10. Nada. As coisas que quero muito fazer estou a fazê-las agora. Não invento projectos para servir programações de teatros, open calls ou programas de apoio. Só aceito as encomendas que faço a mim próprio. Não sei mesmo o que quero/vou fazer a seguir. Mas sei que será mais do mesmo. É o meu mais insistente avantgarde.

11. De todos os anacronismos presentes na rotulagem musical contemporânea, “indie pop” é o que me dá mais vontade de rir…

12. Não sei quem é.

13. Sempre que alguém me diz que só aceitou jogar o jogo proposto pelo sistema opressor para o poder controlar/manipular, mais cedo ou mais tarde esse alguém vai criar o seu próprio sistema opressor. Basta aparecerem novos “jogadores”.

14. Serei livre no dia em que deixar de actualizar o meu CV.

15. Água mole em pedra dura, tanto dá até que fura.

Qual destas respostas imaginárias corresponde ao tema que gostavas de ver na Flanzine?

A última de todas. Um adágio clássico que dava um excelente meme contemporâneo. Mantendo viva a sua origem facebookiana, a Flanzine podia dedicar um número à mais alta manifestação literária dos nossos tempos (os tais que começaram nas cavernas): o meme! Já comecei a trabalhar na minha contribuição. Vai-se intitular #memesis e vai ser sobre macacos.

É (ou será, quiçá) o fim da macacada! Não haveria melhor forma para terminar esta conversa. Agradeço-te a disponibilidade e paciência para ela. Fica um até já.

Mais:
www.rogerionunocosta.wordpress.com
www.facebook.com/rogerionunocosta.art

Julho 2017

*A Luísa Cativo faz sempre o contrário do que lhe dizem, não por rebeldia mas porque tem um medo de falhar tão agudo que a leva a atirar-se na direção oposta àquela que seria expectável. A sua introversão e ansiedade social levaram-na a ter um cabelo cor de rosa que a fez ganhar o troféu de maior freak do liceu (um belo troféu feito de gesso que infelizmente deitou fora) e toda a gente a conhecia na sua terrinha. Seguiu o sonho de estudar Design de Moda na melhor escola do país e teve uma depressão clínica profunda que quase a deixou careca. Licenciou-se em Fotografia mas só gosta de fotografar amigos em analógico e foge a sete pés do digital. Organiza uma festa colorida chamada Thug Unicorn com duas coleguinhas que atrai centenas de pessoas há cinco anos. Não sofrendo o suficiente a passar música em frente a tantas pessoas, decidiu também ser DJ a solo sob o nome de Catxibi, só para poder torturar-se mais um bocadinho a questionar constantemente a sua aptidão para tal tarefa. Pessoas deixam-na nervosa, mas é activista para que todas sejam tratadas pela sociedade de forma igual, mesmo quando isso atrai a raiva de outras tantas pessoas por motivos que não se compreendem.

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